SOBRE O AUTOR
Helton Timoteo é Especialista em Teoria da Literatura e Produção Textual / Mestre em Linguística (UERJ). Professor e Militar Reformado.
Foi um dos vencedores do Prêmio Internacional Off Flip de Literatura, em 2014 (categoria poemas); um dos vencedores do XV Prêmio Literário da Fundação CEPERJ, em 2014; semifinalista (2020) e finalista (2021) do Prêmio Internacional Pena de Ouro (categoria contos); finalista do Prêmio Augusto dos Anjos de Poesias (2023); 1º Lugar no Prêmio Nacional da Revista Ele/Ela, em 1999 (categoria contos); um dos vencedores do Prêmio Digital Nacional da Biblioteca Pública do Paraná, em 2020 (categoria romance). Obteve o 1º Lugar do 4º Prémio Internacional Pena de Ouro, em 2023 (categoria poemas). Obteve o 3º Lugar do 1º Prêmio Nacional Prata da Casa, em 2024 (categoria poemas), do qual também foi finalista na categoria conto e semifinalista na categoria crônicas e poemas. É detentor ainda de mais oito prêmios literários (conto, crônica e poesia).
É autor dos livros de poemas Réquiem para Lavine (2015), Maçã Atirada sem Força (2017) e Última Flor (2023), e do romance A Canção de Variata (2022), todos publicados pela Editora Penalux.
Seu perfil (Facebook e Instagram) destina-se à publicação de poemas de sua autoria, fragmentos de contos, de crônicas e do seu romance; diálogos com outros autores; análises de textos; dicas de leitura; reflexões filosóficas e poéticas.
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Facebook: heltontimoteo.silva
Tel.: (21) 98709-3941
O CONTO FINALISTA
OLHOS DO POETA
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
(Carlos Drummond de Andrade)
Passava das onze da noite. Os dois jovens – ele com 23, ela com 17 –, depois de ingerirem várias doses de uísque com energético e aspirarem pitadas de um pó esbranquiçado, decidiram sair à rua à procura de alguma diversão que justificasse suas miúdas existências. Que locupletasse seus seres embaçados pelo álcool e pelas drogas. Desceram, em passos trôpegos, as escadarias do segundo andar do prédio em que moravam no Leblon.
Enquanto se encaminhavam para a Av. Delfim Moreira – pretendiam pegar um ônibus para Copacabana –, o rapaz chutou com toda a força as costelas de um cachorro vira-lata deitado na calçada, que, após ter sido atacado covardemente, fugiu com o rabo entre as patas, gemendo de dor e medo; agrediu uma lixeira inofensiva, espalhando todo o seu conteúdo no chão; fez sinais obscenos para duas senhoras que, apesar da idade, reagiram à ofensa com gestos e alguns palavrões. E, em resposta aos protestos delas, trovejou uma forte gargalhada.
Embarcaram no primeiro ônibus. Àquela hora, quase vazio. O motorista, os olhos vermelhos de cansaço e da poluição, olhou-os de viés, contraiu ligeiramente o maxilar e fez cara de poucos amigos, provavelmente farejando a encrenca que deles poderia advir. Os jovens, ao perceberem a reação do motorista, entreolharam-se com cumplicidade, e novamente explodiram numa estrondosa gargalhada. O coletivo, rangendo os amortecedores fatigados pelo uso contínuo e pelas pancadas dos pneus nos inúmeros buracos da via urbana, seguiu viagem.
Após ter percorrido toda a Av. Vieira Souto e a Rua Francisco Otaviano, em Ipanema, o ônibus finalmente contornou o Forte de Copacabana e prosseguiu em direção à Av. Atlântica. Quando se aproximou do Posto Seis, os jovens – que haviam permanecido em silêncio durante todo o trajeto, contrariando as expectativas do motorista – levantaram-se e, depois de acionarem a campainha com desnecessário estrídulo, aproximaram-se da porta de saída.
Desembarcaram em frente à Rua Joaquim Nabuco. Ao descerem, o rapaz ergueu a mão direita e, como quem ergue um galho seco, estendeu o dedo médio na direção do ônibus, que já se deslocava lentamente rumo ao centro da cidade. O motorista, ao ver pelo retrovisor aquele gesto, instintivamente pensou em deter o veículo e aplicar um corretivo no atrevido. Mas pensou melhor e desistiu; não valia a pena se estressar com aqueles dois idiotas. Lembrou-se dos próprios filhos, e, sacudindo a cabeça de um lado para o outro, concluiu: “A juventude é assim mesmo”.
No calçadão de Copacabana, dirigiram-se para a estátua de Carlos Drummond de Andrade, junto a qual um casal de idosos tirava fotografias. Como já se aproximava da meia-noite e era dia de semana, a praia estava quase deserta. Apenas alguns transeuntes perambulavam por ali. E dois cachorros fuçavam uma lixeira, à cata de algum alimento apetecível. Os velhinhos se afastaram do monumento e, de mãos enlaçadas, foram embora, sem sequer reparar nos dois adolescentes.
O jovem casal aproveitou, então, a oportunidade. A menina sentou-se lascivamente no colo do poeta e, como se posasse para foto, abraçou-o e começou a acariciar, devagarinho, suas faces de metal. Profundamente inebriada pela poderosa energia que emanava daquele rosto imóvel, beijou-lhe, sem nenhum pudor, os lábios frios. Sentiu o gosto amargo do azinhavre na boca, e cuspiu, quase alvejando os pés do namorado que, irritado, puxou-a violentamente pelo braço, arrancando-a do seu delírio. Ela reagiu:
— Seu grosso!
O rapaz, indiferente à reação dela, olhou em torno, vasculhando atentamente os arredores, para verificar se estavam sendo observados. Percebendo que ninguém reparava em suas magras e insignificantes existências, fitou a namorada nos olhos e indicou, com a cabeça, os óculos do poeta. Como ela pareceu não entender seu gesto (ou fingiu não entender), murmurou:
— Vamos levar os óculos dele.
— Pra quê?!
— Sei lá... Só de sacanagem.
— Melhor não.
— Deixa de ser frouxa! — exclamou ao mesmo tempo em que retirava do bolso da calça um alicate.
Aproximou-se furtivamente da estátua. Olhou novamente a sua volta, para certificar-se de que não havia mesmo ninguém espionando. Pressionou a ponta do alicate contra a haste metálica dos óculos, a fim de removê-la. Em menos de dois minutos já estava com o produto do furto na mão. A moça olhou-o, em silêncio. Em seguida, contemplou o rosto impassível do bardo e, sem saber bem o motivo, achou que ele ostentava uma expressão extraordinariamente nua e melancólica, ou talvez fosse apenas uma impressão sua, uma percepção deturpada pelo medo e pela súbita vontade de dar o fora dali.
Desviou os olhos da figura do poeta e, jogando os cabelos sensualmente para trás, abaixou-se com lentidão e se concentrou no verso inscrito no banco onde ele estava sentado, as pernas cruzadas e a mão direita distendida sobre a esquerda, que repousava sobre um livro parecido com um notebook: “No mar estava escrita uma cidade”. Olhou pensativa para o mar e para a cidade, mas não conseguiu decifrar o conteúdo do verso. Qual a relação entre uma coisa e outra? Por que uma estaria “escrita” na outra? Não conseguia apreender o sentido desse verbo. Voltou a olhar para o poeta, mas não conseguiu arrancar dele nenhuma resposta.
— Vamos vazar daqui! — disse o rapaz, interrompendo seu devaneio e puxando-a bruscamente pelo braço.
— Vamos. — Apressou-se em responder, ao mesmo tempo em que tomava os óculos e o alicate das mãos dele, escondendo-os na mochila, dessa vez sem reclamar da sua brutalidade.
Atravessaram a avenida correndo e embarcaram no primeiro ônibus. Ao chegarem ao prédio onde viviam, subiram rapidamente as escadas. Abriram a porta do apartamento e praticamente se jogaram em seu interior. Ela retirou da mochila o alicate e os óculos e os depositou na mesinha encardida da sala.
Foi até a estante. Pegou uma garrafa de uísque. Trouxe dois copos, um dos quais entregou ao namorado que, ainda rindo, havia sentado no sofá. Encheu-os. Um deles transbordou. O líquido dourado misturou-se a outras imundícies do piso, exalando um forte odor. Mas eles não se incomodaram. Com o tempo – e o hábito – tinham se acostumado àquela sujeira. Não se incomodaram nem quando ele, regurgitando feito um animal, vomitou na própria roupa. Ela também sentiu náuseas, mas conseguiu conter o vômito. Sentou-se na poltrona, enquanto o namorado – derrotado pelo álcool e pelas drogas – estirou-se no sofá, e começou a roncar alto. Por fim, adormeceu.
De madrugada, a campainha soou insistentemente. Ela, acreditando que sonhava, levou ainda algum tempo para despertar de todo. O namorado, completamente embriagado de sono, sequer se mexeu. O jeito foi ela mesma cambalear até a porta para descobrir quem importunava àquela hora. Na pressa, esbarrou na mesinha da sala e derrubou sobre o tapete – junto com a garrafa de uísque – os óculos de bronze.
Sem ao menos olhar pelo olho mágico, escancarou a porta. Ao descobrir de quem se tratava, ficou, ao mesmo tempo, incrédula e estarrecida, se é que é possível conciliar esses dois sentimentos num único ser. A estátua do poeta, mal iluminada pela fraca luz do corredor, estava bem ali diante dela, e com uma expressão tão séria no rosto, que a fez estremecer.
— Cadê meus óculos? — perguntou, à queima-roupa.
Ela, terrivelmente assustada, recuou.
— Seus... seus... óculos... — balbuciou, sem conseguir articular uma resposta.
— É. Onde estão? — repetiu o poeta, secamente.
Ela, tentando controlar o nervosismo, respirou fundo. Aos poucos, conseguiu se controlar. Afinal, era apenas a estátua de um velhinho que, embora tenha sido inicialmente rude com ela, já não parecia oferecer-lhe qualquer ameaça. Por isso, criou coragem e, apontando para a mesinha, respondeu:
— Tá ali. — Mas por que o senhor quer eles de volta, se já não precisa mais deles?
— Sou míope desde criança. Praticamente, enxerguei o mundo, a minha vida inteirinha, através dos meus óculos. Eles não são apenas um adereço, como um cordão ou uma pulseira. Tornaram-se uma parte de mim. De certa forma, foi graças a eles que me tornei o que sou. Mesmo as outras pessoas já não conseguem dissociá-lo de minha imagem. Se não os usasse, não teria escrito estes versos do Poema de Sete Faces: “O homem atrás do bigode / é sério, simples e forte. / Quase não conversa. / Tem poucos, raros amigos / o homem atrás dos óculos e do bigode.” Então: vai ou não me devolver meus óculos?
Ela o fitou, penalizada. E pensou: “Deve ser uma barra esse negócio de ser poeta. Ter poucos amigos. Não ter quase ninguém pra conversar. Que vidinha mais ou menos!”
— Gostaria — respondeu — mas não posso. Foi ele — apontou na direção do namorado — que pegou. Se eu devolver pra você, quando ele acordar ele me mata.
Sem dizer nada, o poeta olhou-a demoradamente. Avançou dois passos e, durante algum tempo, observou minuciosamente o ambiente. Voltou a olhar para a menina. Notou o quanto era bonita – e frágil. Compadeceu-se de sua situação.
— Posso ao menos — quase lhe implorou — tocá-lo pela última vez?
— Promete que vai devolver?
— Prometo.
— Palavra de poeta?
— Palavra de poeta.
Ela, então, recuou até o centro da sala. Recolheu do chão os óculos e, ainda meio indecisa, estendeu-os ao bom senhor. Ele os ergueu diante dos próprios olhos durante alguns segundos. Tornou a olhar a seu redor. O mau cheiro. A imundície. A desordem. A mediocridade. O caos daquelas minúsculas existências. A submissão da menina àquele indivíduo, como se ele tivesse atado a seus pés uma bola de ferro, impedindo-a de ser ela mesma, de ter vontade própria. Olhou de novo praquela frágil criança e, profundamente comovido, murmurou:
— Pode ficar com eles. Você precisa muito mais que eu. — Aproximou-se dela e pôs os óculos em seu rosto.
Ela, sem entender direito a atitude dele, viu-o desaparecer diante de seus olhos como se tivesse evaporado, como se tudo aquilo não passasse de um sonho. Subitamente, um vento gelado entrou porta adentro, fazendo-a estremecer da cabeça aos pés. Num impulso, correu e fechou a porta com estrondo. Ainda com os óculos no rosto, voltou-se para o interior do apartamento.
O namorado, feito um traste jogado no sofá, dormia a sono solto. A pia repleta de louça. O piso todo manchado de bebida e restos de sanduíche em decomposição. Roupas íntimas atiradas para todo lado. O colchonete cheio de nódoas de esperma e suor. As toalhas de banho e de rosto completamente imundas. O estojo de maquiagem todo esfacelado, praticamente inservível. De repente, como se estivesse olhando pela primeira vez para tudo aquilo, sentiu uma náusea inusitada vindo do estômago, percorrendo o esôfago e travando sua garganta. Teve nojo da própria vida repulsiva.
Lembrou-se, com ternura, dos pais. Tanto que eles disseram para ela não sair de casa! Que aquela paixão não ia dar em nada! Uma melancolia tão aguda perpassou seu ser, que teve ímpetos de se jogar da janela do apartamento. Ao invés disso, dirigiu-se ao banheiro. Abriu o chuveiro e, sem tirar as roupas ou os óculos, deixou que a água quente encharcasse seu corpo, levando consigo, para as vias escusas do esgoto, fragmentos de cabelo, chuviscos de gordura, toda a amargura e o tédio que preencheram até ali a sua miúda existência.
Quando terminou o banho, se livrou das roupas, mas manteve os óculos grudados em seu lindo rosto. Recusou-se – terminantemente – a se enxugar com aquelas toalhas imundas. Abriu a gaveta do armário do quarto, de onde retirou um vestido antigo, e com ele se secou. Vestiu-se. Recolheu algumas roupas e alguns objetos pessoais. Penteou com extrema suavidade os longos cabelos negros. Caminhou em direção à sala, pela qual passou sem sequer olhar para aquele indivíduo que quase arruinara sua vida. Saiu do apartamento, deixando a porta escancarada.
Lá fora, o dia começava a raiar. A brisa marinha acariciou seu rosto belo e úmido; insinuou-se entre suas coxas morenas, quase levantando seu curto vestido. Fechou os olhos por alguns instantes, fruindo as delícias daquela dádiva da natureza. Sorriu. Mas não era para ninguém. Aquele sorriso era para ela mesma. Acariciou o vira-lata que o ex-namorado agredira no dia anterior. Ajeitou a lixeira que ele quase havia arrancado com um pontapé, devolvendo a ela o conteúdo que jorrara no asfalto. Infelizmente, não encontrou as duas senhorinhas ofendidas pelo (só agora percebia) mau caráter com quem morava até há pouco.
Extasiada, olhou, ou melhor, contemplou a paisagem a sua volta e achou tudo tão extraordinariamente diferente, mas ao mesmo tempo tudo tão simples, genuinamente simples. Achou o dia magnificamente lindo. Sentia-se livre “como uma besta” e “simples como um disco”. Os óculos do poeta – amalgamados em seu belo rosto – lhe permitiam enxergar o mundo com outros olhos. Pouco importava se as outras pessoas, chafurdando na sua ignorância, zombassem dela por estar usando óculos de bronze, com uma armação completamente antiquada; se a encarassem como uma pobre suburbana, arrastando pela rua ainda sonolenta, o seu corpo frágil, delicado feito um último suspiro de amor.
Suspirou fundo e, decidida a nunca mais voltar àquele lugar, embarcou num ônibus; sentou num banco próximo ao do motorista, a quem gentilmente cumprimentou, e, o coração perpassado de uma inusitada calma, prosseguiu rumo ao último subúrbio da Zona Oeste, de onde nunca, nunca deveria ter saído.
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