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PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: ALEXANDRE DE OLIVEIRA KAPPAUN

Foto do escritor: Casa Brasileira de LivrosCasa Brasileira de Livros

Atualizado: 12 de jun. de 2024


SOBRE O AUTOR


Sou Alexandre de Oliveira Kappaun. O meu nome não me define, mas gosto dele. Sou professor de relações internacionais e de economia, mas isto também não me define. Sou tradutor e escritor e aí, já estamos chegando perto de quem eu realmente sou. Desde a pré-adolescência, ou melhor, “desde que eu me entendo por gente”, sempre quis ser escritor, inicialmente, escritor de ficção científica. Não era ainda a resposta definitiva à crucial questão de “o que você quer ser quando crescer?”, mas apontava na direção correta. A vida afastou-me do meu objetivo, quando comecei a ensinar na universidade e quase fui tragado e afogado pelo turbilhão do universo acadêmico, até o dia que eu descobri que eu não ERA professor (apesar de gostar de lecionar), eu ESTAVA professor. Daí veio a tomada de consciência e vieram à luz os meus escritos literários e não apenas os meus escritos acadêmicos e artigos de opinião em jornais. Daí nasceu o meu primeiro livro de poemas, Magnífica Permanência (Clube de Autores, 2017), e depois veio a minha participação em duas antologias: Nós: poesias para tardes ensolaradas (Lura Editorial, 2019) e a X Coletânea Século XXI (PoeArt Editora, 2020). Mas a pergunta continuava: “o que você quer ser quando crescer?”, que espécie de escritor você quer ser? Já não bastava apenas o objetivo da infância: ser um escritor de ficção científica. Pois eu quero a liberdade de poder passear pelos diversos gêneros literários e quero que a minha escrita tenha mesma densidade e a profundidade da minha conversão ao catolicismo. Eu quero, ou melhor, eu sou hoje um escritor católico, talvez não tão competente (ainda) quanto outros escritores católicos que hoje me servem de modelo e de inspiração: J.R.R. Tolkien, Walter M. Miller Jr, Gene Wolfe, Flannery O’Connor, Paul Claudel, Gustavo Corção, Ariano Suassuna, Adélia Prado etc. A lista é longa e eu espero um dia poder estar nela.



O CONTO SEMIFINALISTA


In Persona Christi

Alexandre de Oliveira Kappaun

Dedicado ao Mons. José Maria Pereira


“Abri, pois, o vosso coração, e não endureçais mais vossa cerviz (Dt 10,16)”.


I


Os pequenos lapsos e esquecimentos só vinham piorando. Nos últimos meses, padre Alessandro vinha tendo dificuldades com suas leituras e orações, sobretudo pelas manhãs, quando ia rezar as laudes ou ler a Bíblia. Quando rezava o terço, também, mesmo com a ajuda do rosário, ele se perdia e algumas vezes misturava o Pai Nosso com as Ave-Marias, começando por uma oração e terminando pela outra. O que estava acontecendo? Talvez fosse cansaço. Mas como assim, cansaço!? Padre Alessandro tinha apenas 36 anos e, como vigário da Paróquia de São João Maria Vianney, ele costumava ver o seu pároco, padre Aguiar, com quase 70 anos de idade, firme e forte, com toda a disposição do mundo, a rezar missas, ouvir confissões, lecionar no seminário e na universidade etc. Talvez, o velho fosse ele e o novo fosse o velho padre Aguiar, sorriu padre Alessandro, deixando as divagações de lado. Ele precisava ir para a Igreja. Era uma primeira sexta-feira do mês, quando ele rezava a missa das sete horas da manhã, enquanto padre Aguiar ficava no confessionário, atendendo às confissões.

Era uma manhã fria de inverno, e quando ele chegou à igreja ainda estava escuro. Padre Aguiar já estava lá, sentado numa das cadeiras do altar, lendo o Breviário. Padre Alessandro entrou em silêncio e se sentou num dos primeiros bancos, fez suas preces e começou a ver as anotações que fizera em seu tablet, na véspera, para a sua homilia. Enquanto o tempo passava, o dia clareava e a luz começava a entrar através dos vitrais, fazendo com que a igreja ficasse toda iluminada em um belo tom de azul celeste. Nas missas feriais o sermão era curto, de uns cinco minutos, mais ou menos. Durante a semana não era bom atrasar muito a missa, pois muitos dos fiéis saiam da missa direto para o trabalho e não podiam chegar atrasados. Mas toda primeira sexta-feira do mês, era dia da Santa Missa dedicada ao Sagrado Coração de Jesus.

A primeira parte da missa, chamada de Missa dos Catecúmenos, transcorreu sem incidentes. O sermão de padre Alessandro saiu conforme o planejado, como de costume. Padre Aguiar terminara de administrar as confissões e, agora, acompanhava a missa em um dos bancos laterais da igreja. No meio da oração eucarística, quando os fiéis estavam ajoelhados para a consagração do pão e do vinho, padre Alessandro não conseguia se lembrar do que deveria dizer. Toda a igreja estava em silêncio, esperando as palavras do sacerdote. Aflito, padre Alessandro começou a procurar no missal, virando as páginas de um lado para o outro, mas não conseguia mais ler nada. Era como se a sua vista estivesse embaçada. Em seguida, foi como se ele estivesse fora do seu corpo, assistindo a si próprio a fazer a consagração, como que em alguma língua estranha, como alguém da Renovação Carismática a falar em línguas. Depois, ficou tudo branco, tudo embaçado e ele não conseguia mais se lembrar de nada.

Soube depois, pelos relatos dos que estiveram na missa, que padre Aguiar subira ao altar e o tirara de lá. Lembra de voltar a si, sentado na sacristia, enquanto uma das fiéis, enfermeira, cuidava dele. Ao lado, padre Aguiar terminava de rezar a missa.


II


Padre Alessandro sentia-se como cobaia de algum experimento científico, tanto eram os exames e testes aos quais teve de se submeter. Eram tantas as perguntas sobre o seu histórico familiar. Testes de memória e de cognição, exames de imagem, exames clínicos, exames, exames e exames. E sempre ao seu lado, estava o piedoso padre Aguiar, como um pai a acompanhar os problemas de saúde de seu filho. A sensação que ficava era a de que os papéis estavam invertidos. Padre Alessandro é que era o mais jovem. Ele é quem deveria estar acompanhando e cuidando do velho padre Aguiar. Era apenas a sensação, já que ele não se revoltava. Entregava tudo a Deus e a Virgem Maria.

Mais uma vez, os dois sacerdotes estavam no consultório do neurologista. Era um dia nublado e tudo estava acinzentado, do lado de fora. Dentro, a iluminação elétrica amarelada preenchia o ambiente. Depois dos cumprimentos habituais, padre Alessandro desabafou:

— Doutor, o que realmente me entristece foi não ter conseguido terminar a consagração na minha última missa. Sinto-me quase como se tivesse cometido algum sacrilégio...

— Não fique assim, meu filho — interrompeu carinhosamente padre Aguiar — Nosso Senhor Jesus Cristo sabe que não foi por vontade sua.

— O senhor tem razão, padre Aguiar! — Disse o doutor e depois continuou — padre Alessandro, depois de examinar cuidadosamente todos os seus exames e de conversar com alguns colegas, infelizmente, não tenho notícias nada boas para lhe passar. O seu diagnóstico é de Alzheimer precoce. Normalmente, o Alzheimer precoce surge em pacientes de idade entre quarenta e cinquenta anos. Mas pode surgir um pouco antes ou depois. Como o senhor deve saber, o Alzheimer não tem cura, mas há meios de se reduzir os sintomas e de se retardar o avanço da doença. No seu caso, a doença já está bem avançada. Como o senhor é um homem de estudos e oração, o seu cérebro conseguiu “enganar” a doença e ela só foi percebida quando estava bastante avançada.

Por alguns instantes reinou um silêncio profundo no consultório do neurologista. Padre Alessandro estava com o olhar cabisbaixo e o clima era pesado. Mas o que pareceu durar uma eternidade, dado a gravidade da situação, foram, na verdade, poucos minutos. Depois de ter dado um tempo para que o seu vigário pudesse digerir a notícia, o pároco quebrou o silêncio e disse:

— Meu filho, não se inquiete! Já conversei com o doutor e com o bispo e o seu tratamento será feito da melhor forma possível em um lugar bem calmo e tranquilo. Você ficará no mosteiro beneditino da capital, que, ao mesmo tempo está situado num local calmo e tranquilo e bem próximo dos melhores hospitais e clínicas. O bispo já conversou com o abade e ele disse que o receberá com muito prazer. Afinal de contas, uma das vocações dos monges beneditinos, como você sabe, é a hospedagem. Tenho certeza de que a oração e o carinho dos monges, a paz e a tranquilidade do mosteiro e, para você, meu filho, que tanto gosta da música tradicional da igreja, o canto gregoriano lhe fará muito bem. E, sempre que eu puder, eu visitarei você.

Chovia, quando os dois saíram da clínica.


III


Naquela manhã de primeiro sábado do mês, depois de ter rezado a Santa Missa dedicada ao Imaculado Coração de Maria, padre Aguiar entrou no seu carro e pegou a estrada rumo à capital. Como fazia todos os sábados, ia para o mosteiro beneditino a fim de visitar o seu antigo vigário. Fazia sol, um belo dia para se visitar o mosteiro. Com certeza, os jardins do mosteiro estariam cheios de luz e vida, com os cantos dos pássaros e dos monges, e o som dos sinos da igreja do mosteiro a chamar os monges para o Ofício das horas.

Passaram-se dois anos, desde que padre Alessandro entrara no mosteiro. A doença avançara mais rápido do que o previsto e era comum o jovem padre não reconhecer mais o seu antigo pároco. Às vezes, no entanto, a graça de Deus oferecia momentos nos quais padre Alessandro estava lúcido e os dois podiam ter uma agradável conversa, como antigamente, antes da doença dominar a mente do jovem sacerdote. Padre Aguiar torcia para que hoje fosse uma dessas ocasiões, mas não tinha muita esperança. Durante a semana, o abade telefonara-lhe para dizer que o quadro do seu protegido piorara muito, desde a visita anterior. Tudo estava nas mãos de Nossa Senhora, que ela iluminasse a mente do padre Alessandro.

Chegando ao mosteiro, padre Aguiar conversou primeiro com o abade, que lhe deu a grata notícia de que padre Alessandro parecia estar bem. O velho padre ficou aliviado. Seria muito agradável poder conversar com o seu jovem amigo.

— Pode entrar — disse padre Alessandro, depois de ouvir baterem na porta da sua cela — pode entrar, a minha porta está sempre aberta para o senhor, padre Aguiar — o jovem já sabia quem batia à sua porta.

— Como você está, meu filho? O abade acabou de me dizer que você acordou hoje muitíssimo bem. Fico muito feliz com esta boa notícia. Parece que Nossa Senhora resolveu visitar você — disse o pároco sorrindo.

— Pois é, padre, o senhor sabe que eu já não tenho mais conseguido rezar o breviário. A minha mente já não consegue se concentrar mais na leitura dos salmos. Ou são as letras que se embaralham, ou são as frases que não se concatenam. De toda forma, o que eu tenho feito, no lugar, é rezar o terço. Mas apenas o terço. Não consigo mais me concentrar para rezar um rosário inteiro. Mas os mistérios do terço do dia me fazem muito bem. Sinto-me cada vez mais próximo de Nossa Senhora.

— Que bom, meu filho. Fico feliz em ouvir isso.

— Pois é, padre, em tais momentos, eu consigo até não me sentir tão mal por aquela missa que eu não consegui terminar de rezar...

— Ah, meu filho, Nosso Senhor sabe que não foi por mal, você não teve culpa.

— Sei disso, padre, mas há uma parte dentro de mim que se quebrou naquele dia. Foi como se eu não tivesse honrado o sacerdócio e o sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo.

— Bem, mas vamos esquecer este assunto e conversar sobre coisas agradáveis...

E os dois continuaram a conversa até o fim da tarde. À noite, os dois amigos cearam juntos e, depois, padre Aguiar pegou o carro e dirigiu de volta para a sua paróquia.

Fora um dia agradável — pensou padre Alessandro, enquanto entrava em sua cela e preparava-se para rezar o terço, antes de se deitar. Sábado normalmente era dia de se rezar os Mistérios Gozosos, mas ele se sentia tão bem que queria rezar os Mistérios Gloriosos. Nossa Senhora não se importaria. Padre Alessandro ajoelhou-se, fechou os olhos e começou a rezar:

— Divino Jesus, nós vos oferecemos este Terço que vamos rezar, meditando os mistérios da nossa redenção. Concedei-nos, por intercessão da Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, as virtudes que nos são necessárias para bem rezá-lo...

Quando estava no quinto mistério, a coroação de Nossa Senhora como Rainha do Céu e da Terra, padre Alessandro, mesmo com os olhos fechados, sentiu uma forte luz em seu quarto. A princípio ficou assustado. Será que estou imaginando coisas!? O dia estava tão bom! Por que a doença tinha de voltar agora? — pensou padre Alessandro.

— Por favor, minha Mãe, me deixa ao menos terminar de rezar este terço, antes do Alzheimer voltar a dominar a minha mente! — implorou padre Alessandro, ainda de olhos fechados.

— Não se inquiete, meu filho! Sou eu, sua Mãe, que vim terminar de rezar este terço em sua companhia. Não se assuste, meu filho! Pode abrir os seus olhos.

A voz feminina que lhe dirigia a palavra soava tão calma e tão suave, tão angelical, que ele não teve medo de abrir os olhos. Quando o fez, viu em seu quarto uma luz forte e, no centro, Nossa Senhora, que olhava para ele com um olhar cheio de ternura. Caso houvesse alguém do lado de fora da cela, veria uma luz forte a sair das frestas da porta e da janela.

Padre Alessandro permanecia de joelhos, em profunda admiração e não sabia o que dizer.

— Não diga nada, meu filho, apenas termine as cinco Ave-Marias que faltam.

— Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres...

Quando terminou de rezar o terço, Nossa Senhora voltou a falar:

— Obrigado, meu filho, por mais este terço que você rezou para o meu Filho, através da minha intercessão. Saiba que Jesus ouviu a sua oração e me pediu para vir buscar você.

— Mas minha Mãe, Jesus não está triste comigo por eu não ter conseguido terminar a consagração do pão e do vinho na minha última missa? Eu não consegui terminar a consagração...

— Aquiete o seu coração, meu filho.

— Mas, minha mãe, dizem que eu falei um monte de palavras sem sentido. Isso não é desrespeito, em um momento tão solene?

— Não, meu filho, não foi assim. Você se lembra de ter se sentido fora de seu corpo, como se fosse outra pessoa que estivesse rezando a Santa Missa naquele momento?

— Sim, minha mãe, segundo o meu médico, isto foi um delírio. Sinal do Alzheimer dominando a minha mente.

— Não, meu filho. Naquele momento você estava in persona Christi, na pessoa de Cristo, como todo sacerdote, durante a Santa Missa. Você realmente viu outra pessoa fazendo a consagração em seu lugar, era meu Filho. E aquelas palavras que você pensava não ter sentido, era Jesus rezando a consagração em sua língua nativa, o aramaico. Portanto, meu filho, aquiete o seu coração e se deite, quando acordar, você estará com o meu filho.

Com o coração aliviado, padre Alessandro se deitou em seu leito e dormiu com um sorriso em seu rosto. O seu rosto brilhava, mas ele não percebeu. Só no dia seguinte, quando descobrissem o seu corpo sem vida, veriam que a sua face resplandecia a luz do Senhor.


FIM


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