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PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: ALVIM FERREIRA




SOBRE O AUTOR


Alvim Machado Ferreira, 37 anos, nascido, criado e morador de Florianópolis (Desterro).

Fortemente conectado à cultura da ilha de Santa Catarina e, em contraposição, um interessado pela variedade de assuntos, formatos e pessoas que habitam o resto mundo, escreve desde 2007 crônicas e contos sobre o que lhe inquieta e desperta curiosidade.



A CRÔNICA SEMIFINALISTA


Ver o movimento


“Oh Teca, vem aqui sentar na frente de casa comigo”. Meu Avô repetia isso nos seus últimos anos de vida. Criança que era, eu não entendia nada. O que haveria de haver em frente de casa. Ficava lá, no inverno, de jaqueta e boina. Braços semi-cruzados, e, na maior parte do tempo, em silêncio. Minha Avó o acompanhava, levava o croché, revistinha de macramé, rolo de fio 10, agulha. Lá ficavam, horas, em cadeiras de madeira desconfortáveis que ainda hoje existem e ocupam o mesmo espaço. 

Para constar, realmente não era nada de especial. Biguaçu, cidade pequena e pouco desenvolvida da grande Florianópolis. Década de 90, sem internet. Telefone, basicamente só fixo. Ainda, vez que outra, um pouco antes das festas de fim de ano, as chuvas vinham e tomavam a cidade. O Rio Caveiras, que corta o pequeno município transbordava, recolhia pertences variados, um pouco de cada morador e atirava ao mar. Mas não dos meus avós, o terreno da propriedade fica ligeiramente no alto, no dito “morro da bina”. Sabe-se lá o porquê do nome. 

Meu avô foi, até o fim, um grande apreciador de aves. Tinha de tudo atrás de casa. Terreno grande, inclinado, pedregoso. Criava desde patos e marrecos em uma pequena lagoa esverdeada, até galinhas e perus no que sobrava do lote. Havia também cabritos, dizia ele que ficavam à vontade em terrenos como o dele. - Meu pai repete isso até hoje, “bom pra cabra é terreno com pedra e pirambeira”. Por certo, algum cacoete herdado geneticamente, talvez eu um dia faça o mesmo. - Viveiros por todo lado, pássaros exóticos importados de todo canto. O Seo Alvim gostava mesmo de observar. Tratava dos bichos e os olhava fixamente, como um mestre budista meditando. Essa era a atividade matinal. 

A casa, construída por ele mesmo, que foi pedreiro durante muito tempo, era sólida. Apenas um piso, janelas viradas para a frente onde hoje passa a BR-101. A vista, então, era essa. A calamitosa e mortal rodovia, à época ainda não duplicada, e, logo abaixo, um grande descampado que levava ao mar. Sim, a visão do mar no fim de tarde é linda daqueles lados, mas nada que justifique a exposição ininterrupta ao infernal barulho de caminhões e buzinas. Mas a vida seguida dessa forma, toda tarde em frente de casa. 

Vez que outra, ele enunciava algo como: “gosto de ver o movimento.” Ver o movimento. Outra coisa que me chamava a atenção. Lê-se aqui fluxo de carros, aos montes, acidentes e alguns transeuntes. Novamente, nada espetacular. Cidade pacata, gente conhecida. Pessoas com formatos de relação que só fui entender já bem mais velho. Dizia o Vô. “Lá vai a Maria do Tonho, perigosa essa daí.” A posse gramática, aqui, é ferramenta indicativa de vínculo. Pode ser marido, mulher, filhos, genro, nora, agregado, enfim, qualquer coisa que aponte a procedência daquele indivíduo. Geralmente, na boca do Vô, com algum defeito. “Esse dali é corno, mulher dele vive no bailão.”; “aquele outro é tolinho, todo mundo engana”; “ihhh, esse tem fama de ladrão”. O velho Alvim gostava mesmo era de fofoca. 

Gostava também de contar “causos”. Na mesma posição, fechado por entre os braços, contava as aventuras românticas quando cuidava de barcos de pesca. Minha vó escutava e fazia o ouvido de mercador. Não dava a mínima. A velhice tem dessas, muito passado, pouco futuro, tem que contar para alguém alguma coisa, mesmo que não valha muito à pena verbalizar aquilo.  

Certa vez, uma irmã o pediu que orientasse um filho, no caso, sobrinho dele. Disse ela: “olha, ele anda fumando e bebendo, vive atrás de um rabo de saia, quer nada com o trabalho.” “Pode deixar, vou resolver com ele”. Chamou o jovem: “senta aqui que a tua mãe quer que eu te dê uns conselhos.” E deu. “Me disseram que andas bebendo, fumando e só queres festa, é isso mesmo?”. Era. “Pois bem, faz isso mesmo. Coisa boa é ser jovem, fuma, bebe e faz toda sorte de porcaria que te vier à cabeça. Eu hoje não tenho nada além de dor nas costas, um coração operado três vezes e saudade daquele tempo. Se a tua mãe perguntar, só diz que a gente conversou, não adianta o assunto.” Acho que a tia nunca descobriu essa versão. 

Foi assim, passando as décadas da aposentadoria contemplando, dia após dia, a mesma vista. Deve ser como Monet, que pintou o mesmo quadro dezenas de vezes, cada um com um detalhe a mais, um tom a menos. Todos iguais e todos diferentes ao mesmo tempo. Contemplação ininterrupta do mesmo objeto. Os assuntos foram morrendo com as pessoas, que já não passavam mais. Haviam se mudado para o endereço fixo eterno. O Vô deve ter se desanimado, pois morreu em seguida. Por certo que achou que no além vida havia uma casa com cadeira e essa gente toda estava lá, passando só para ser assunto. 


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