SOBRE O AUTOR
Aukai Leisner gostaria de escrever coisas sérias mas não consegue.
O CONTO SEMIFINALISTA
OPEN DE CONSELHOS
um conto sobre conselhos não solicitados, porém gratuitos. Porém péssimos.
PERSONAGENS
Aukai, solteiro crônico porém fall-in-lover inveterado.
Balãozinho, playboy hétero-top porém tímido, com cara de bom menino.
Testosterono, heterotop porém hétero-top num nível ao qual meu círculo de amizades, composto majoritariamente de comunistas da Federal, me desacostumou.
PARTE I
Quadra de tênis. Jogamos em três, formato australiano. O nível é calamitoso, e cada um dos jogadores faz muito bem o seu pior: Balãozinho manda bolas altas no fundo da quadra, mas também no meio e próximas à rede (e pra fora); Aukai só dá madeirada de forehand e não bota uma esquerda em quadra; Testosterono mete a mão da bola sem dó nem pontaria.
Balãozinho, que estava perdendo e queria arranjar um pretexto pra esfriar o jogo, interrompe o seu saque e grita pra Testosterono, do outro lado da quadra:
-Piá, não te contei, né? O Aukai tá gamado numa mina da academia, mas não tem coragem de chegar nela.
Uns dias antes, eu tinha caído na besteira de contar pra Balãozinho, que faz academia junto comigo, que eu tava de olho numa menina que treina no mesmo lugar. Falei também que ela era muita areia pro meu caminhãozinho e que, mesmo que não fosse, não saberia como puxar papo em plena academia. Na ocasião, Balãozinho me pediu pra olhar o Instagram dela, confirmou que ela estava objetivamente way out of my league, mas mesmo assim me ofereceu conselhos valiosos (“passe um perfume antes do treino” e “raspe a cabeça, você parece mais careca agora que tentou deixar o cabelo crescer”) e um encorajamento comovente (“piá, tenho amigos bem mais feios que já pegaram minas assim”). Mas nada comparado ao espetáculo, ao super combo, ao choque 220V de héteropzice que se seguiu a essa fofoca intempestiva:
-Deixa eu ver o Insta, demanda Testosterono, indo em direção à rede e parando de vez o jogo.
Balãozinho pega seu celular na mochila e mostra a Testosterono o perfil de Instagram da menina.
-Gata, mas tem mó cara de FEMINISTA., sentencia, gritando pra mim, que tinha preferido continuar no fundo da quadra, girando nervosamente a raquete entre as mãos, a xingar Balãozinho mentalmente.
-É, né, fazer o quê, retruco maquinalmente, sem disposição pra proselitismo militante nem presença de espírito pras minhas habituais tiradas de tiozão.
-É, mas você também tem pinta de quem curte mina chatinha assim, né? Parece o teu número mesmo. Por que você não chega nela?
-Ah, mano, é muita areia pro meu caminhãozinho, né? Olha pra ela e olha pra mim. Além do mais, não sei puxar papo com menina na academia.
-Pare, meu. Beleza não é tudo. E não tem essa de ter vergonha de falar com ela na academia. Mina gosta é de atitude. Saca só:
Ele então toma o celular da mão de Balãozinho, vai até o chat do Instagram e começa a gravar um áudio:
-Seguinte, gata: tô aqui com dois parceiros meus que malham na mesma academia que você, tá ligado? E um deles tá mó a fim de você. Não é esse do Instagram aqui, é um outro, um careca, com um nome esquisito: Aukai. AU-KAI. Dá uma chance pra ele, viu? Falou!
Devolve o celular pra Balãozinho, que o encara com um misto de admiração e aborrecimento, e dispara:
-Taí, seus trouxa. É assim que se faz.
-Piá, não acredito que você fez isso! Eu tenho namorada, meu!, dispara Balãozinho, com uma indignação pouco crível.
-Relaxa, piá. Eu falei que não era você, só mandei a mensagem do teu cel, pondera Testosterono.
Apesar de seus protestos, Balãozinho estava claramente mais fascinado que incomodado, e fui eu, 100% contrariado, que tive de ser a voz da razão.
-Mano, apaga essa merda, pelo amor de Deus.
Depois de uma disputa de quase cinco minutos entre o anjo auto-interessado e o diabo da auto-ajuda tóxica, durante a qual Testosterono ainda blefou que iria até a academia falar pessoalmente com a menina caso deletássemos o áudio, Balãozinho, movido sobretudo pelo medo de se complicar com a namorada, cedeu aos apelos do bom senso e apagou a mensagem.
PARTE II
Voltamos para o jogo, cujo nível decaiu ainda mais: Balãozinho, buscando talvez recobrar um senso de segurança ou movido pela culpa, jogava bolas cada vez mais ridiculamente altas e lentas, tão fáceis que se tornavam difíceis; eu, ainda de cara com aqueles dois manés, já tinha perdido a vontade de jogar e batia na bola de qualquer jeito, sem me preocupar com a sequência do ponto; Testosterono, decerto energizado por sua ousadia héterotop, foi o único que voltou melhor, metendo a mão na bola com a mesma violência amadoresca de quem quer provar que sabe “bater forte”, mas agora errando menos - o suficiente pra vencer de lavada.
Findo o jogo, eu percorria a quadra catando minhas bolinhas, ainda praguejando mentalmente contra todos os envolvidos naquela patacoada - contra eu mesmo, sobretudo, por ter sido idiota o bastante pra confiar algo íntimo ao palerma do Balãozinho - quando noto os dois sentados no banquinho lateral, inclinados sobre a tela de celular de Balãozinho, dando risada.
-Porra, mas vocês não se cansaram dessa história ainda, não?, vociferei, começando a ficar realmente puto da cara.
-Calma, Calabreso. Que paranóia é essa? Quem disse que a gente tá no perfil da tua musa?, defende-se Testosterono.
Balãozinho não diz nada, mas continua olhando pra tela do celular, com um riso apatetado.
Me aproximo pra conferir e, de fato, não era o Instagram da menina. Era o meu: uma página absolutamente despretensiosa, desleixada mesmo, sem nenhuma curadoria, com três ou quatro fotos antigas de Facebook pouquíssimo Instagramáveis, um vídeo da minha falecida cachorra, um post anunciando aulas de inglês e uma meia dúzia de posts com links pra crônicas que eu publico sem nenhuma regularidade.
Os dois tavam mais felizes que pinto no lixo, e passaram dez minutos se atravessando, como se estivessem disputando pra me vender uma consultoria de imagem, entre críticas mordazes (“se a mina vir essa foto aqui, ela te exclui na hora”, sentenciou Balãozinho) e sugestões de como tornar meu perfil mais atraente (“Tem que postar umas fotos caprichadas. Saca só:”, Testosterono puxa seu celular do bolso e me mostra a foto mais recente do seu Instagram. Foi tirada da sacada de seu apartamento em Camboriú, com vista pro mar. Ele estava de regata, bronzeado, com óculos de sol, olhando pro horizonte. “Tem que saber se vender, tá ligado?”).
-E essas fotos aleatórias aqui? perguntou de repente Balãozinho, que continuava a vasculhar meu Instagram enquanto Testosterono seguia com seu curso intensivo de como não ser um loser no Instagram.
-São só thumbnails. Embaixo tem os links pras crônicas que eu escrevo de vez em quando, respondi seco e franco, esperando que eles me consagrassem de vez como um caso perdido e me deixassem em paz.
Contra todas as minhas expectativas, eles começam a ler uma delas. Depois de trinta segundos, Testosterono ergue o olhar pra mim e solta:
-Legal, mano, parece que você escreve bem. Sabe quem vai gostar dessas paradas? PETISTA! Manda pra mina lá que ela vai curtir.
-Falando em petista…, interrompe Balãozinho, apontando prum post com uma foto do Lula em preto e branco, que servia de thumbnail pra uma mini-crônica criticamente elogiosa que eu tinha escrito logo depois da eleição de 2022, mas que muito bem poderia ser uma foto com um comentário reaça, do gênero BRASIL-EM-LUTO. Mas é claro que não seria - pra eles eu já tinha o physique et psyché du rôle de petista extraordinaire.
-Mano, sério, apaga essa foto aqui. Você é mais do que qualquer político,filosofou Testosterono, ganhando a aprovação entusiasmada de Balãozinho, que acrescentou, em humilde Glauco pós-moderno:
-Sim, mano, é isso aí!
PARTE III
Participei do resto da conversa o menos possível, até que o ânimo salvífico deles pareceu amainar e fomos nos encaminhando pro estacionamento, onde enfim largaram de vez do meu pé pra falar de carro. Aproveito o ensejo pra me despedir e, como estou a pé, saio na frente e vou voltando pra casa, a quatro quadras do clube. Duas quadras depois, com o sinal fechado, ouço uma buzina e vejo o carro de Testosterono, com o vidro do passageiro aberto, parando perto da calçada.
-Ô, mano, desculpa qualquer coisa. Cê sabe que é só zoeira, né?
-Relaxa, mano. Vocês são uns filhos da puta, mas não dá nada.
O sinal abre, mas ele ainda tem algo a dizer:
-Meu, já que a mina faz Medicina (informação que constava do seu perfil no Instagram), procura depois no Google sobre um filósofo da medicina, HIPÓFISIS o nome. Cê pode conversar com ela sobre isso.
Uma derradeira pílula de sabedoria héterotop, um conselho tão espontâneo, de uma crença tão cândida na sua eficácia, que me desarmou e quase me comoveu.
-Hmmm, não conheço. Não é Hipócrates, não?
Uma pequena fila tinha se formado atrás dele e os carros começaram a buzinar.
-Não, mano, HI-PÓ-FI-SIS. Procura lá no Google depois. Falou!
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