SOBRE A AUTORA
Bárbara Parente é carioca e mora atualmente em Sorocaba, interior de São Paulo. É escritora, estudante de roteiro audiovisual, contista, revisora/preparadora de textos freelancer e presta serviço de revisão para várias editoras brasileiras e autores independentes desde 2014.
Publicou em 2021 sua primeira novela para o público infantojuvenil, Céu abarrotado de estrelas, pela Editora Edebê, livro aprovado para o Programa Minha Biblioteca – Ensino Médio, da cidade de São Paulo. Em 2022, teve seu segundo livro publicado, O Reciclador de Palavras, para o público infantil, pela Palavras Educação, aprovado no PNLD Literário 2023.
A CRÔNICA SEMIFINALISTA
Inércia
A morte sempre me pareceu muito distante, ao passo que a dor era algo inconformadamente físico e presente, aliviada por analgésicos e pomadas anti-inflamatórias. Mamãe era adepta do ibuprofeno, diclofenacos, bolsa térmica, chás de boldo, hortelã e capim-cidreira. Assim curávamos as dores físicas. Assim me acostumei a sanar um mal que me atingia apenas o estômago, as costas e o esporão recente no calcanhar direito.
À janela aberta da sala de estar, o silêncio na rua, estabelecido por uma pandemia recém-instalada, protestava. Não se ouviam carros, passos ou vozes, latidos mais pareciam ganidos no fundo de uma piscina semivazia, apenas o canto dos pássaros permanecia sereno e afinado diante da brutalidade dos imovimentos. Uma angústia se projetava das construções ao redor, o cinza se revelando mais imundo que a peste que assaltava a sanidade lá fora. O verde das árvores frondejantes era uma ironia a exacerbar a beleza natural da vida diante da ausência do ser humano destruidor de ares. Nunca o verde foi tão verde e o azul do céu foi tão cobalto.
Dentro de casa, mamãe se mantinha alheia ao confinamento, ainda que se isolasse de si mesma e do mundo ao se imobilizar diante dos doramas da tevê. Não conversava sobre o desaparecimento dos ruídos, não perguntava sobre os vizinhos, não estranhava minha presença insistente vagando pela casa. De vez em quando, soltava um “isso é mau” para o objeto diante de si, enquanto as lágrimas de uma atriz de cabelos negros molhavam a fronha branca do travesseiro. Era a única maneira de vê-la se emocionar e de me fazer entender que do outro lado daquele semblante de pedra havia alguém que ainda sentia.
Penso que o alheamento de mamãe a fazia sofrer menos. A realidade dela parecia bem apartada dali, perdida em algum ponto entre a dor da alma e a morte física. Ela não estava isolada, como todos os outros; ela estava descolada do tempo e do espaço presente. Ela não usava máscara no rosto para proteção contra o vírus; ela era feita de armadura para se distanciar do convívio.
Ser obrigada a ficar trancada dentro daquelas paredes que antes eu chamava de lar me angustiou. Sobretudo por perceber que alguém que eu cumprimentava com beijos todos os dias e que preparava minhas refeições morava numa jaula sem grades, presa ao próprio abandono, sofredora invisível de dores não físicas e que se afogava sozinha em si mesma para não permitir que eu me afundasse junto com ela.
Até aquele momento, não havíamos perdido ninguém para o vírus. Amigos, familiares, conhecidos... estavam todos com saúde, trancafiados nos próprios cativeiros. O isolamento de mamãe não era de hoje, não começou com a pandemia. Eu nunca havia percebido isso, pois passava pouco tempo em casa, voltada para o trabalho no escritório, as saídas com amigos nos finais de semana e a leitura diária de livros de cabeceira e trechos bíblicos. Isso enquanto mamãe permanecia imóvel sentada numa poltrona verde-musgo, diante da tevê se comunicando com pessoas que não sabiam de sua existência. “Isso é mau.” E eu, sua filha, que sabia de sua existência, não fazia por ela muito mais que os atores que declamavam um texto decorado; apenas ministrava seus remédios controlados e lhe perguntava se estava tudo bem.
Como bem disse Camus em A peste, “Há sempre alguém mais prisioneiro que eu”.
O tempo foi passando e a pandemia foi se instalando cada vez mais. Já contávamos mais de duzentos mil mortos no Brasil. Havíamos perdido um vizinho, além de dois amigos próximos, que se foram sem direito a velório ou enterro. A partir daí, a dor física ficou em segundo plano. Não havia mais ibuprofeno ou dipirona que bastasse. A dor emocional se instalou em mim e o medo ficou mais palpável. A doença se aproximava e não havia mais o que fazer. Não saíamos de casa há meses, passávamos álcool em gel nas mãos e braços com uma frequência absurda, usávamos máscaras para andar pelo quintal, não recebíamos visitas e as compras eram feitas por delivery. Tudo para que não fôssemos alcançadas por um vírus dissimulado que avançava pelo ar e que era tão imperceptível quanto uma brisa fria no fim de uma tarde de outono.
Apesar de tantos cuidados, era impossível prever as tragédias. O tempo parecia não querer prosseguir, suspenso naqueles dias sombrios. O celular tocava com mais frequência do que em dias normais, as palavras entaladas na garganta, a coceira se manifestando numa tosse seca querendo sair para o ambiente ainda não infestado.
Mas o silêncio encobre a verdade. E a inércia de mamãe, que eu tanto criticava, deu lugar a gemidos, tosse e falta de ar. Não houve tempo suficiente para o cuidado e o afeto. A prisioneira que havia dentro de mamãe me deu adeus nove meses após o início do isolamento, de forma tão repentina quanto um raio sem tempestade. O vírus não a havia confinado em casa, mas a libertado de si mesma em seu fim. Quanto a mim, continuava isolada naquele espaço de sessenta metros quadrados, agora sem a necessidade de ministrar remédios nos horários certos, sem ouvir as panelas sobre o fogão ou a água do chuveiro caindo sobre um corpo que não era o meu.
Um silêncio maior que aquele que acometia mamãe me invadiu e permaneceu aqui dentro, no vazio de uma dor que eu nunca havia sentido antes.
A poltrona verde-musgo continuava ali, deformada pelo corpo que foi embora, agora livre do cativeiro. E todos os dias, às quinze horas, a televisão pré-programada ligava e a mesma atriz de cabelos negros surgia na tela como a me lembrar daquela ausência. Sentei-me em frente à mulher desconhecida, sentindo a forma de mamãe desenhada na espuma da poltrona, e torci por sua felicidade, ainda que encenada na tela, e me pus a pensar no que eu mesma pensava naquele momento: Isso é mau, eu sei, mamãe. Isso é mau.
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