SOBRE O AUTOR
Sou psicólogo, estudante de pós-graduação, amante de arte, café e gatos. Gosto de ler, escrever, desenhar e viajar. Já ganhei prêmios literários, participei de coletâneas e fui finalista de diversos concursos, dentre eles, ganhei o primeiro lugar no 1° prêmio Jundiaí de Literatura, de 2023 e fui Destaque no prêmio Off Flip de Literatura desse ano.
A CRÔNICA SEMIFINALISTA
No (des)compasso do amor
A praça em frente à Igreja estava particularmente saturada aquela noite. Também as ruas laterais, que convergiam para a avenida central, cujo pavimento logo desaparecia em pó ou barro, a depender do humor do verão, na longa estrada de terra até a cidade. Algumas poucas barracas de comida e brinquedos estendiam-se até o final da zona iluminada pelos postes caiados, que demarcavam também o limite da diversão familiar. Dali para a frente, os carros sujos e os casais pouco discretos ocupavam o espaço, além dos bêbados atordoados, que preferiam o canteiro escuro aos banheiros imundos do lado oposto, para se aliviarem. Um limbo de amor, urina e despedidas.
O centro daquele pequeno distrito rural estava agitado e ornamentado como de praxe, com bandeirinhas coloridas e lâmpadas penduradas, o calor do óleo, da chapa, o cheiro de carne, álcool e fritura, misturado ao fedor do curral não muito distante dali. Não podia faltar as músicas de batidas pulsantes e frases melódicas repetitivas que as faziam parecer todas iguais, e passavam despercebidas suas letras mutuamente plagiadas. Vencidas, em sua maioria, pela confusa massa de vozes, algumas poucas canções se sobressaíam e convocavam todos a entoarem juntos, numa onda de excitação coletiva, reacendendo o ânimo e alterando o balanço mecânico a que se acostumara os corpos. Próximo ao palco, as pessoas vibravam de forma diferente, a megafonia os atingia como se reverberasse de dentro para fora de seus nervos, de modo que não conseguiam ficar parados, agitando-se num ritmo convulsivo e irresistível. Enquanto isso, as fitas coloridas balançavam fragilmente do arco na entrada da capela, como se meios-suspiros as empurrassem de vez em quando. O verão quente e chuvoso economizava no vento aquela hora, assim como o céu, nas estrelas. Provavelmente, mais tarde, a chuva desceria das nuvens ocultadas pela escuridão, preparando a terra para um amanhecer orvalhado.
Minha namorada e eu evitávamos as aglomerações embaixo das tendas e ao lado do galpão, enquanto andávamos selecionando, ainda sem fome, um lanche de boa aparência para consumir mais tarde. Bebidas, só refrigerante e água, ela prefere não consumir nada alcoólico, enquanto eu, que não aprecio cerveja, vez ou outra provo alguma batida, de preferência à base de vinho. Ela segurava meu braço sem apertar, e embora desse a impressão de estar sendo conduzida, era eu a ser guiado por ela, seguindo imediatamente seus passos, enquanto meus olhos vagueavam pelas pessoas e coisas, como se fossem indistintas. Não observava nada em especial, entrementes alguma explosão de euforia entre os ébrios, ou um olhar sórdido, que, quando encontrava o meu, me incomodava profundamente e despertava um estado de alerta. Havia algo de deprimente em toda aquela cena. Talvez porque a noite parecia um mundo à parte, onde todos os instantes são fugazes, condenados a um amanhecer impiedoso, e eu era o único a desejar que ela acabasse, como se minhas veias estivessem carregadas de amargura.
Não me recordo o tema daquela festa, embora a capela fosse o epicentro e provavelmente celebrava algum santo, mas para a maioria, não passava de um renovado pretexto para a insônia voluntária e a bebedeira. A essa altura, já estava habituado ao seu ritmo, que consistia em andar sem rumo por alguns minutos, tentando desviar dos transeuntes, e parar num canto qualquer, onde tivesse espaço suficiente para dois corpos estacionarem, sem esbarrar nos demais. Nessas festas mineiras, minha única diversão era vê-la dançando, vibrando a cada refrão, com seus olhos castanhos brilhando e batom reluzindo. Eu a observava conformado, acompanhando com o olhar cada movimento seu, como que para me lembrar do motivo de estar ali, e em verdade, somente ela importava, como se apenas nós ocupássemos aquela pista, o bairro, a cidade, o mundo.
Apesar de amplo, não se via claramente naquele espaço, sobrecarregado de sombras e vultos. As luzes do palco, por outro lado, pareciam retalhar os corpos, e me atingiam com seu clarão, como se quisessem me derrubar. De fato, eu estava tentando sobreviver ali, e tudo me parecia hostil, como se rejeitassem minha presença ou eu fosse simplesmente indesejado. Estava ficando tarde, a noite ainda não dava sinais de declinar quando a chuva condensou e lavou a praça, escorrendo pelas tendas, formando cachoeiras e pequenos córregos entre as ruas. As pessoas se apertavam no estreito e desalinhado espaço coberto, empurrando-se e lançando-se umas sobre as outras, colidindo chapéus, botas, braços e pernas. Um sujeito inclinou-se e quase vomitou sobre outro, enquanto segurava seu copo Stanley, evitando derramar a cerveja barata, como o fez com sua bile.
As gotas de chuva brilhavam sob o halo difuso dos postes e piscavam sob os holofotes e canhões de luz, deixando colorido aquele fenômeno celeste. Entretanto, agora tínhamos de esperar a chuva passar para nos afastarmos daquela multidão caótica, e enfim voltar para casa, atravessando o barro e a ponte encharcada. Rezei para que a chuva estancasse logo, mas era quase impossível ouvir meus próprios pensamentos, e minhas preces ficaram incompletas e vãs. À brisa da madrugada somou-se a umidade da chuva, diminuindo a temperatura, embora os corpos mutuamente se aquecessem, trocando calor, empurrões, beijos e bebidas.
Com efeito, aprendi que me manter em movimento era menos cansativo do que ficar parado. Acho que isso também vale para vida. Se não fosse o amor, qual seria a razão de estar ali, contrariando meu espírito e meus músculos que a todo instante se contraíam, prontos para a fuga? Eu a amava verdadeiramente, e em nenhum momento cogitei deixá-la, apesar de minhas pernas quererem dobrar e abandonar o peso do meu corpo, que naquele momento não passava de um epitáfio no meio de um circo. Por outro lado, sabia que a juventude me condenava a um eterno retorno e logo tudo isso se repetiria, com sorte, na próxima estação. Não sei se era a multidão, os olhares, as músicas, a noite, ou a soma desses elementos que consumiam minha energia, e me deixavam paralisado e tenso, enquanto ela parecia não conhecer cansaço ou desânimo quando seu corpo embalava em dança, como se não tivesse trabalhado o dia todo, sobre suas pequenas pernas e com uma persistente dor no ciático. Sem economizar nos movimentos, ainda tinha fôlego para acompanhar o cantor e quase nenhuma letra escapava do seu repertório. Percebi então como as músicas evidenciavam nossas diferenças, tal qual o dia e a noite, ou Jorge e Mateus e Beethoven, por mais que eu tivesse aprendido a apreciar o sertanejo, antes de se misturar com outros gêneros e viciar no mesmo estilo meio eletrônico e temas como “sentada”, carros e boiadeiro(a).
Eu olhava para o relógio com certa ansiedade e angústia como se ele estivesse atrasando a aurora, enquanto ela parecia suplicar-lhe que não abreviasse as horas noturnas. Na verdade, eu era o estranho, um introvertido irremediável, ou apenas demasiado chato e entediante, mas certamente, o que faltava em mim, ela tinha de sobra. Naquele momento, não importava minha pós-graduação, ninguém queria saber das minhas críticas ao capitalismo neoliberal, nem que eu soubesse escrever crônicas. Nada disso me fazia menos ordinário do que qualquer um deles, conectados por uma sinergia, que eu não era capaz de compreender. Será que eram assim tão incompatíveis os elementos de nossas almas? Que fenômeno tão diverso era esse que minha natureza aliena? De repente, ela me puxou para perto de si e me envolveu a cintura, balançando suavemente num ritmo que só ela conhecia. E então, me veio a resposta, clara como o sol que em breve despontaria no horizonte imaculado: eu não sabia dançar.
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