SOBRE O AUTOR
Elton Mesquita nasceu em Chapadinha, Maranhão. Tem 46 anos, é Católico, mora em São Paulo e é escritor, tradutor e roteirista.
O CONTO SEMIFINALISTA
O QUE A NOITE NÃO MATA
O rosto do homem era uma máscara.
Embora de momento a momento enxugasse a testa com o braço, fios de suor encontravam caminho até seus olhos, que ardiam e lacrimejavam. Franzia a testa e arreganhava a boca em uma carranca de dentes à mostra, fungando e arfando de calor, cansaço e fome.
Do céu sem nuvens o olho atento e inescapável do Sol acompanhava a lenta jornada pela estrada. As coisas tremiam à distância no calor do meio-dia: pedras, pó, poucas plantas indistintas na paisagem fosca e sem sombras que, vista através das lágrimas, se estilhaçava na incerta miragem de uma visão fantasmagórica.
O homem estimou a hora do dia pela altura do astro e decidiu parar e descansar. Apoiando a axila no cajado (um galho de freixo retorcido cujo castão era um nó bruto de madeira), esticou os pés alternadamente, dando pequenos chutes para diante e massageando as panturrilhas. Então bebeu do odre que trazia à cintura, e após um momento de hesitação jogou água no rosto e nos cabelos.
Contava com água para breve. A última semana fora um só longo dia repetido à exaustão, sem mudanças ou surpresas: o Sol o acompanhava por toda a manhã até perto do final da tarde, quando então ventos fortes sopravam, levantando poeira, obrigando-o a proteger os olhos com as mãos. Chumaços de nuvens escuras colidiam vagarosamente no céu borrado de cinza, difusos clarões lampejando nos pesados ventres negros. Então a chuva. Gotas gordas estalando em moedas líquidas que escorriam pela pele, descendo pelas pernas, abrindo buracos na terra fofa e na poeira, deixando atrás de si o primeiro cheiro bom de petrícor.
O homem estudou o caminho. A maior parte do tempo seguia pelo ermo, encontrando algumas estradas que, pelo tamanho e estado de conservação, diziam o que precisava saber sobre as cidades próximas. A estrada em que agora estava compensava a estreiteza com um bem-conservado calçamento de pedra, e ele viu a passagem freqüente de carruagens nas marcas de rodas largas e espaçadas impressas na areia entre as pedras. E à margem, em uma estela decorada ele leu: “PARA O SÉTIMO PORTÃO”.
Aproveitando a pausa, levou a mão dentro da clâmide na altura do peito e apalpou o pequeno volume. Uma promessa de sorriso adejou em seus lábios mas não se cumpriu, e seu rosto assumiu uma expressão concentrada e tensa.
Ele se lembrou.
***
O vento levantava a areia e a arremessava às mancheias em sua direção. Ele cerrava os olhos, apertava a boca e seguia tateando à frente com o cajado sem ver o caminho, protegendo o rosto da poeira com o braço.
O calor e a fadiga mascaravam um pouco a dor nos pés. Um pequeno conforto, a ser pago quando viesse a noite e ele parasse para descansar o corpo, no trato firmado consigo mesmo de como sofrer ordenadamente: de dia, seguia em marcha puxada a passos largos, mas levava a mente vazia, dispersa na paisagem, absorta no esforço e no calor obsedante. À noite, repousava o corpo, mas a mente trabalhava madrugada adentro feito pedra de moinho, lentamente se erodindo contra o problema da existência.
O vago plano de procurar emprego nos estábulos de alguma cidade dissolvera-se junto com o dinheiro e a comida. Era herói, matara uma besta de lendas, mas tinha a consciência suja de um crime inominável e nem sequer cometido. Era príncipe, mas errava como um mendigo pelo mundo. Era jovem, mas seguia a custo pelas trilhas feito um velho, sobre pés estropiados que lhe dificultavam progressivamente o caminhar, como se com intenção maligna procurassem facilitar o destino profetizado pelo deus, venerado entre todos, que o arrancara displicentemente da estrada reta para jogá-lo por caminhos tortuosos, condenando-o a uma existência mais incerta que a dos cães. Longas horas madrugada adentro ele seguira o predeterminado percurso das estrelas, considerando a última ação libertadora de que dispunha e cuja mera possibilidade o fazia adiá-la indefinidamente.
O homem caminhou por todo o dia até o final da tarde, quando a estrada começou a se elevar em direção à passagem pelas montanhas. Já não fazia calor. Nuvens cinzentas e baixas prenunciavam chuva para breve e um vento frio soprava pela estrada.
O céu rugiu. Um lento e derramado ribombar ecoou entre as nuvens como o ronco encrespado de um gato grande, e foi respondido pelos grunhidos famintos do seu estômago.
Uma pesada cortina d’água se abateu sobre o mundo. O homem se deixou ficar parado, estúpido de cansaço, com as costas um pouco arqueadas para trás e os ombros pensos, recebendo água no rosto. Depois de algum tempo endireitou as costas, fincou o cajado no chão e continuou subindo pelo caminho cada vez mais íngreme, seguindo mais devagar e hesitante à medida que a força da enxurrada aumentava.
Não havia abrigo à vista. Teria que seguir em frente, esperando que no topo da passagem as formações rochosas pudessem protegê-lo da tempestade. Ele olhou para o vale mais abaixo. Um burrinho tolerava a chuva, impassível, de cabeça baixa, mastigando tufos ralos do maqui. Algumas crianças nuas corriam e pulavam por entre as casas retangulares de adobe dos lavradores. Mais além um poço, um canteiro de ervas suspenso num jirau. Olhando para o alto, ele viu a coroa negra das montanhas. O vento gemia escoiceando entre as rochas e o rumor vindo do alto ficava cada vez mais próximo à medida que o homem subia. A enxurrada agora corria em desimpedida torrente, ameaçando fazê-lo deslizar e rolar na lama até lá embaixo, e ele se viu forçado a prosseguir rastejando de gatas, sentindo a firmeza do terreno à frente com a mão e o cajado. A água e o barro respingando cegavam-no, seus ouvidos doíam.
Ele decidiu ficar onde estava e esperar. Sentia-se cansado demais, e não confiava nem em si nem no terreno de barro mole, de onde a pouco e pouco pedras se soltavam e rolavam pelo caminho até o fundo do vale. Sentado de costas para a chuva, voltado para o lugar de onde viera, com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça baixa entre as pernas, ficou olhando sem ver enquanto o chão de barro se esvaía ladeira abaixo.
Uma faísca lampejou e sumiu sob a capa de água turva. O homem se atirou sobre o objeto e sentiu a picada de alguma coisa que se enterrou profundamente na polpa macia da palma da mão direita. Ele urrou de dor, depois de raiva. E um longo rugido rolou pelo céu em resposta, ecoando pelas pedras e entre as nuvens. Ele trouxe a mão ferida para junto do corpo, e após contemplar serenamente as fitas sinuosas de sangue escorrendo, deu um suspiro e puxou o broche. Era uma jóia nova, de ouro ainda polido, mas bastante machucado. Mostrava um gigante recostado em algumas rochas sendo cegado por uma longa lança sustida por dois homens. De bom gosto, boa feitura, como os que ele via em casa. Ele puxou um pedaço da clâmide, de onde cortou uma tira de tecido, e com ela enfaixou a mão.
Aos poucos a chuva enfraqueceu, enfim parou de todo. Após vasculhar a lama com o cajado e se convencer de que não havia mais nada de valor para ser achado ali, o homem prendeu o broche na clâmide e se levantou para recomeçar a caminhada. Uma fraca luz amarelada se filtrou de entre as nuvens, anunciando a chegada do anoitecer para dali a uma hora.
Ele seguiu em marcha puxada até chegar ao cimo escuro da montanha, onde um caminho serpeava entre as longas rochas que, deslocadas em antigos tremores de terra, apontavam desencontradas para o céu. Ali decidiu parar, recobrar o fôlego e encher o cantil nos nichos escavados nas rochas, gretas erodidas pelo tempo onde grossos veios de água corriam e se depositavam.
Quando levava a mão enfaixada ao odre um homem apareceu do meio das pedras, pulando e patinando na lama a cada aterrissagem, mais escorregando que correndo estrada abaixo a toda velocidade. O estranho, um homem de barba negra rala, calvo, com um estômago redondo sobre pernas franzinas, passou veloz, sem dar tempo de perguntar nada; seguiu caindo, se ralando nas pedras miúdas, erguendo-se e continuando sem olhar pra trás. Sumiu numa curva e então veio o grito:
— Volte! Volte daí!
O homem sacou a espada e com um movimento rápido enrolou a ponta da capa no braço esquerdo, que então levantou para diante à maneira de um escudo.
Salteadores. Ele não os temia, era um soldado lúcido e bem treinado e sabia que bandidos de estrada eram no mais das vezes gente desesperada, que agia por impulso e sem organização, brandindo armas precárias, mal manuseadas. Seria um bom exercício para as juntas que ele já sentia enrijecer.
Ele prosseguiu lentamente, passando por entre os blocos de rocha entulhados, subindo e descendo por eles como se fossem degraus, entranhando-se cada vez mais pelo caminho recamado de sombras até chegar a um ponto em que o terreno se tornava um declive.
O vento suplicava e zombava às suas costas. E ele ouviu outra coisa por trás do vento: um som engasgado e áspero, uma espécie de chiado; ataques ritmados de ar soprado por alguma passagem estreita e úmida. Perto. Então o fedor o atingiu, fazendo-o cobrir o nariz com o braço protegido. Cheiro forte de sangue velho, carniça e excremento.
O som e o cheiro ficavam mais intensos à medida que ele avançava. As rochas se afastaram, revelando um anfiteatro natural no ponto em que o caminho terminava num rebordo de pedras. Dali tinha-se uma visão desimpedida do proscênio logo abaixo. O homem se deitou de bruços na ponta de rocha mais avançada e olhou e viu então a criatura de costas, tossindo como os gatos quando expulsam pêlo da garganta. Uma versão de pesadelo dos leões, suja e mal-tratada, com o pêlo escuro manchado de sangue antigo e recente, contorcendo-se e estirando-se para diante em arranques pausados, asas abrindo, fechando e se armando para trás e para o alto em desalinho a cada acesso, espalhando longas penas negras infestadas de piolhos pelo chão. A face vista de relance ao se voltar um pouco para trás era uma grotesca imitação do rosto humano, como se construída a partir de instruções mal compreendidas, movendo-se trêmula sobre um colo murcho de onde pendiam seios secos e peludos, de auréolas negras e rachadas. O cabelo sujo e desgrenhado, empastado de sangue seco de sol e poeira, emoldurava uma expressão faminta e maligna, de ângulos e proporções aberrantes. E pior que qualquer coisa, a voragem escura da boca muito grande, contorcida num ricto que arremedava um sorriso e revelava dentes em fileiras desconjuntadas.
O lugar era uma ruína desolada. O chão, irregular e empedrado, era manchado de marrom, vermelho e negro. Fatias de colunas tombadas se espalhavam, erodidas, próximas à base das rochas altas. Do lado direito, no canto do palco semicircular, ainda era possível ver indícios de uma pequena escadaria de degraus baixos, quase totalmente coberta por hera e musgo. Havia ossos por toda a parte, róseos, vermelhos, negros e brancos. A um canto, um crânio ainda coberto por cabelo loiro cingido por uma tiara que parecia ter sido colocada ali com displicência, como zombaria. O vento soprava tufos de cabelos de muitas cores, agora igualadas no tom baço da morte em meio a poças de sangue e jóias ensangüentadas cobertas por moscas. Broches de ouro e esmeralda, anéis de rubi, braceletes de ametista, colares e brincos… Espalhadas sobre os montes de ossos, aparecendo por entre as pilhas de excrementos e os chumaços de cabelo. Uma pequena fortuna em ouro e pedras.
A criatura finalmente expeliu o que a incomodava — uma massa de longos e úmidos cabelos humanos ensangüentados — e se voltou agilmente na direção das pedras onde o homem se escondia. Ele quedou paralisado. Não ousava levantar a cabeça para ver, mas podia ouvir tudo: passos se aproximando e se afastando, e uma contínua e engrolada queixa, numa voz mais repelente por quase parecer humana, voz alquebrada de quem padece alguma falta — sede, fome ou solidão.
O homem fechou os olhos e levou a mão ao cabo da espada e esperou, respirando suavemente. Como se encontrasse escondido, aos poucos foi conseguindo dominar o terror que amortecia os sentidos e as idéias, e então se pôs a considerar um plano de ação. Só precisava recuar bem devagar, sair dali em silêncio e procurar outro caminho para descer, ou mesmo voltar por onde viera e dar a volta pelo pé da montanha, e viveria ainda. Mais, até: iria à cidade mais próxima arregimentar mercenários e voltaria para matar a criatura.
A rocha em que ele estava rangeu alto, cambaleou para frente e desabou com um alto fragor, trazendo-o para o chão de uma só vez em meio a uma chuva de lama e pedregulhos. Seu quadril colidiu contra uma quina de rocha e o homem gritou ao ver a espada lhe escapar da mão, indo cair a meio caminho entre ele e a fera. Ele se arrojou de cara no chão e a lama o cegou. A última coisa que ele viu foram os olhos amarelentos da criatura focando-se nele, seu rosto reconfigurando-se numa expressão abjeta de surpresa feliz e faminta. O homem começou a rastejar de quatro na direção onde calculara ter caído a espada, machucando os cotovelos e joelhos nas pedras e ossos, se sujando de escória animal e sangue velho. Com um último impulso desesperado se jogou para diante, e sua mão tocou o cabo da arma. A lufada das grandes asas batia cada vez mais perto, e no instante seguinte a sombra da criatura o encobriu, crescendo rapidamente ao se abater sobre ele com violência. De olhos fechados o homem gritou e, de joelhos, golpeou o espaço à frente. A espada atingiu o flanco da criatura e reverberou cantando como se atingisse mármore. Um rugido atroou nas trevas. Gotas de saliva salpicaram-lhe o rosto e um bafio morno e fétido o envolveu, queimando-lhe as narinas, revirando-lhe o estômago e provocando convulsões de enjoo. Ele sentiu a tontura do desmaio, sua boca se encheu de saliva.
Príncipes e princesas como ele. Brinquedos caros, enfeites e perfumes e agora poças de sangue alimentavam as moscas, excremento e tufos de cabelo sem nome e sem história se espalhavam pelo chão. Outro rugido e um forte impacto no torso o derrubou e prendeu ao solo, o braço armado subitamente imobilizado por um grande peso. Cabelos roçaram-lhe o rosto e o peito e o homem soube que a coisa aproximava a cabeça. Um sopro pestilento chegou até ele e gotas de saliva pingaram e escorreram por seu rosto anunciando que a grande boca se abria. De olhos fechados ele esperou o dilaceramento, um braço cobrindo os olhos, o outro preso, retesando os músculos na antecipação da violência,resfolegando de pavor e de cansaço.
Mas o golpe fatal não veio então. E uma voz se fez ouvir nas trevas:
Existe um ser de vária voz.
Pés ele os tem quatro, dois, três.
Nada há na terra, céu ou mar
Tão inconstante, estranho ou só.
Quanto mais pés, mais lento fica,
Mais e mais fraco, cego e mouco.
DECIFRA-ME OU TE DEVORO.
*
A chuva voltou a cair em aguaceiros intermitentes noite adentro. O homem encontrara um vão escavado em uma parede encimado por uma projeção de pedra e decidira passar a noite ali. Por muito tempo quedou pensativo, olhando sem realmente ver a pequena recompensa sinistra que tomara para si, sopesando o objeto conspurcado, que sacrifício algum purificaria. Sua mente remoía e revirava cada faceta do acontecido com a obsessão dos culpados, encontrando muitas ocasiões para escárnio próprio e reprovação.
A vitória fora-lhe antes concedida com condescendência que conquistada. Fora pusilânime: não o salvara a astúcia de que tanto se orgulhava nem a força física, e sim o desespero e a exaustão num momento de fraqueza que o deixara prostrado e sem ação, gritando apenas:
— Sou eu! Me mata! Sou eu!
Mas o golpe fatal não viera então.
O peso em seu peito aumentou repentinamente quando a criatura tomou impulso, e o homem achou por um instante que suas costelas iriam se partir. Foi empurrado para trás com violência pelas pesadas patas traseiras e tudo ficou em silêncio. Quando conseguiu abrir os olhos, depois de lavá-los com água do cantil, o monstro não estava mais ali.
Mais de uma hora se passou até que ele se acalmasse de todo. O homem considerou por um momento seguir viagem, mas a perspectiva de descer a montanha no escuro o oprimia e ele decidiu procurar um lugar para passar a noite. Antes, no entanto, pusera em prática a idéia que tivera já na primeira vez em que vira o cenário grotesco. Trabalhando diligentemente, com uma estranha euforia, em pouco tempo juntou algumas peças de ouro incrustadas com jóias, com a intenção de derretê-las na primeira oportunidade.
Ele dormiu um sono esgarçado e inconstante, acordando a intervalos, sobressaltado por relâmpagos, levantando-se e partindo em busca de melhor abrigo ou tremendo de frio encolhido pelos cantos, coberto com o manto úmido e protegendo-se como podia do vento. Vagou no escuro por trilhas tortuosas entre as silhuetas distorcidas da vegetação raquítica, fantasmas espasmódicos que uivavam retalhando o vento entre os galhos. Pensamentos e lembranças sinistras o seguiram por toda a noite, que se estendeu em horas intermináveis entrecortadas de vigília e sono atribulado contra um imutável fundo negro até que num surdo paroxismo de agonia em uma hora perdida da madrugada ele fraquejou pela segunda vez e em delírio acreditou que a noite jamais acabaria e que se encontrava preso para sempre em um limbo eterno de suplícios. Reconhecendo a hora inescapável ele caiu de joelhos e, curvando-se para o chão, lançou o lamento contra o céu apagado:
— Ototoi, popoi da! Apollon! Apollon!
Não soube precisar quanto tempo se passara, mas em determinado momento a chuva parou.
Ele se levantou, se enrolou com o manto e seguiu, calmo e decidido, tateando pelas trilhas, achando caminho por entre os recessos escalavrados de rocha escorregadia até chegar na borda escarpada da montanha onde grandes blocos de pedra se empilhavam, projetando-se nas alturas. Ele deu o último passo à frente e a ponta do pé direito passou o rebordo de pedra.
Era noite e seria noite para sempre. Ele considerou o abismo escuro com um sorriso desapegado. Uma última ordem, um último esforço dos músculos, o abandono sem peso no céu vazio e o fim. O homem ergueu a vista para o alto, suspirou e fechou os olhos, dobrou um pouco os joelhos e inclinou o torso para diante, esvaziando-se de pensamentos e medos na hora final, suspenso nas alturas, quedando-se um pouco ainda e remoendo agora a questão premente que se apresentara de súbito diante de sua mente, sobre se teria o tom do céu noturno se alterado enquanto ele permanecia de olhos fechados, ou se seria apenas o medo que o retardava mesmo agora depois de perdidas todas as esperanças, e notando o medo que retornara aos poucos feito um escravo escorraçado ele entendeu finamente e então abriu os olhos. Sua vista passou da escuridão completa sob as pálpebras para o primeiro tom de azul escuro que a pouco e pouco sobressaía do fundo da noite. Perto da linha do horizonte as estrelas mais fracas começaram a se apagar.
A noite terminara.
Ele sentiu a mente desanuviar-se como se um deus benevolente soprasse para longe a névoa que a sufocava. Seus ombros se relaxaram e ele suspirou profundamente.
A leste ele viu a linha clara do dia se desenhando e incendiando em dourado e rosa a base das primeiras nuvens, e à claridade que aumentava ele pôde ver as terras em redor ganhando contorno e nitidez. De onde se encontrava tinha visão desimpedida das terras mais à frente, e reconheceu o ponto em que a estrada que vinha seguindo se bifurcava. Era a conhecida encruzilhada dos Três Caminhos. Perto dali, Tebas e uma recepção de herói o aguardavam.
Mais além, descendo alguns quilômetros para o fundo de um vale, ele viu um pequeno acampamento sendo desmontado lentamente enquanto alguns homens — seis pontos negros na distância — se preparavam para retomar viagem. Parecia uma caravana importante: quatro cavaleiros de escolta e uma grande carruagem dourada que faiscava à luz do novo dia.
Ele se sentiu melhor, mais confiante. Se descesse agora e seguisse em passo puxado em direção ao grupo, os alcançaria mais ou menos na altura em que a estrada se bifurcava, e eles com certeza teriam comida, que ele poderia trocar por uma das joias em melhor estado dentre as que coletara.
Firmando-se na beira da escarpa ele fitou o abismo com tranquilidade uma última vez antes de partir, e se surpreendeu então ao ver a forma da criatura, estatelada pateticamente entre as pedras lavadas de água e sangue lá embaixo.
Ela quebrara o pescoço na queda e sua cabeça se voltara para trás num ângulo grotesco. Seus olhos fitavam o homem com uma expressão que a ele pareceu indefinida à luz ainda incerta: ora sugeria alívio, ora terror, ora pena.
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