SOBRE O AUTOR
Sou natural do Rio de Janeiro e atualmente moro em Valparaiso de Goiás GO. Sou romancista, mas também me aventuro por contos e poemas.
O CONTO SEMIFINALISTA
O anonimato da vida urbana
De esquina; prédio antigo; sem varandas, sem marquise; fachada dura, cor de fuligem. A porta pesada da entrada lembrava a de um cofre forte; guardava um saguão de piso negro e espelhado, nu; sem vasos, plantas, quadros, vidraça ou lustres. Durante o dia, a luz solar, amortecida pelas paredes verde musgo, entrava tímida pelo ádito envidraçado. Ao anoitecer, o porteiro com cara redonda e olhar preguiçoso, de quepe azul pálido e ombros galhardos por botões cobreados de uma jaqueta que um mendigo rejeitaria, acendia duas lâmpadas enfiadas em velhas e zinabradas arandelas de latão.
Eu estava acomodado no primeiro andar. No quarto e sala, minha vista principal era um emaranhado de fios num poste de iluminação, situado no cruzamento, cuja lâmpada vazava sua luz amarelada pelas brechas descortinadas, enchendo minhas noites com vultos inquietos.
Todos os moradores, notadamente, já eram idosos, com exceção de uma moça do segundo andar, que aparentava não ter tocado ainda os trinta, claramente torcedora fanática do América, pois, aos sábados e domingos, sempre vestia uma camisa daquele time, e eu que me avizinhava dos quarenta. Éramos todos próximos, obrigados pelas circunstâncias, mas no fundo, totais desconhecidos. Algumas caras vistas nas subidas e descidas pela escada de corrimão ensebado e degraus gastos ou coincidentes encontros, sem cumprimentos, nas chegadas e saídas na portaria, eram, talvez, nossos únicos contatos. Nada sabíamos uns dos outros. Geralmente só dava conta do meu vizinho ao lado quando a pericia vinha mover o corpo.
Eram dias difíceis aqueles; o ano tinha começado mal. Em março o choque de um trem de passageiros com um cargueiro em Anchieta, onde mais de cem pessoas perderam suas vidas, desencadeou protestos em diversos pontos da cidade exigindo do governador Amaral Peixoto mais investimentos para a área de transportes públicos, principalmente o ferroviário. Isso por tabela pressionou ainda mais o governo Vargas, que envolto em acusações, por parte da imprensa de oposição, de um esquema de corrupção comandado de dentro do Catete, patinava em meio à crise econômica. Muitos empresários descontentes com o fortalecimento dos sindicatos enchiam a sociedade com um clima de inquietação quase palpável. Salários parcos tornavam a vida dos trabalhadores um desafio.
E eu... Ia levando... Tocando a vida num vezo maçante. Aos sábados almoçava no boteco de um português na esquina próxima; o cidadão de Trás-os-Montes, que cultivava um espalhafatoso bigode morsa e tinha sempre um lápis na orelha e um pano no ombro, com o qual sistematicamente limpava o balcão de mármore encardido, reclamava que os brasileiros não respeitavam os estrangeiros. E por vezes quando estava com a pá virada completava... “Que pudessem esperar, pois Salazar havia prometido aos patrícios enviar um navio para aqueles que quisessem retornar a Portugal, e se isso acontecesse ele seria o primeiro a embarcar”, afirmava. Mesmo tendo que escutar as lamúrias do galego, valia a pena frequentar seu estabelecimento, nesse dia ele servia uma ótima feijoada. Aos domingos de manhã tomava um bonde, o treze ou o onze, e descia próximo ao passeio público; ia muitas vezes perambular pela calçada da Mesbla, recém-inaugurada na Rua do Passeio, para admirar as vitrines da famosa rede francesa, e ver os cartazes dos lançamentos de filmes na galeria do Cine Palácio. Como o lusitano transmontano não abria as portas nesse dia, dali ia caminhando até o amarelinho na Cinelândia e pagava mais caro por um filé com fritas ou quando a pila era pouca me contentava com um virado a paulista num restaurante perto dos Arcos da Lapa; este restaurante de mobília escura e sombria que emanava as fragrâncias dos perfumes baratos deixado pelas meninas da noite que frequentavam o local, tinha as paredes forradas por bandeiras e fotos de antigos escretes do Corinthians. Nos dias comuns da semana almoçava onde estivesse, já que meu trabalho me levava pelos bairros; eu era vendedor da Caracu. O jantar era sempre pão com mortadela, que trazia a tiracolo, comprado em alguma padaria pelo caminho.
Numa sexta-feira de um novembro calorento, no retorno do trabalho, encontrei na soleira da minha porta, um embrulho de papel de pão, singelamente amarrado com um cordão de sisal, contendo uma fatia de bolo de cenoura coberto com creme de chocolate; não havia nada que indicasse o doador ou doadora. A partir desse dia tornou-se rotina, sempre nas sextas, encontrar a guloseima, mas eu jogava sempre o pacote no lixo, com medo de estar envenenada, como no caso da Rua Bolivar em Copacabana. Li pela época que um vigia, por vingança de ter sido demitido pelo sindico, deu aos dois filhos desse alguns bombons recheados com veneno de baratas; por pouco as crianças não tiveram suas vidas ceifadas. Mas, passado algum tempo, em certa ocasião, devido a uma greve de bondes, não comprei a mortadela e o pão; ainda pensei em pedir ao taxista para parar em alguma confeitaria, mas sua carranca mal humorada não me inspirou a isto. Ao chegar dei com a iguaria enigmática à porta do apartamento... Era sexta-feira. Com fome, resolvi provar da dádiva misteriosa. Dei por primeiro uma pequena e tímida mordiscada; depois, devagar, com desconfiança, fui aumentando o naco... Sobrevivi... Era só cisma minha, a torta estava deliciosa. A partir daí minha curiosidade aguçou-se. Quem seria o meu misterioso “donateur”, que fazia um bolo tão bom?
Os dias iam correndo pachorrentos até que numa manhã isso foi tragicamente quebrado. Quando me preparava para meu passeio dominical habitual, pressenti certo alvoroço no corredor. Olhei pela porta entreaberta e vi um senhor encurvado alto e magro apoiado numa bengala e uma velhinha de cabelos artificialmente louros, armados com laquê, ajustando no pescoço magro um xale marrom; pareciam apressados. Acabei de me vestir e fui até a entrada do edifício. O zelador encostado à porta, meio dentro e meio fora, nas pontas dos pés olhava adiante. Desci a calçada; era um acidente. Do outro lado da rua um bonde, com o motorneiro, um moreno magro de cabelos escorridos, sentado nos degraus do vagão olhando fixamente para o quepe que tinha nas mãos, era cercado por um pequeno grupo de curiosos. Um pouco atrás, apoiado no capô de um Chevrolet, um homem passando a mão pela cabeça como se alisasse o cabelo que já não existia, parecia estar em agonia. Fui até ele. Vi que era o motorista de táxi que me trouxera pra casa por ocasião da greve dos bondes. Não tinha a mesma fisionomia austera daquele dia; agora seu rosto era de apreensão e medo não demonstrando nenhuma abertura para um diálogo.
— O que houve? — Arrisquei.
Sua resposta foi apontar para debaixo do bonde com a mão que segurava uma flanela amarela e disparar com voz embargada que beirava ao choro:
— Eu ainda gritei que tivesse cuidado, mas ela saiu pela porta do meio da rua e sem olhar atravessou a pista; o bonde não conseguiu parar — limpou o rosto vermelho com a flanela. — E a arrastou-a até lá — indicou outra vez, desta feita com o queixo. — Que coisa sem jeito... — balançou a careca negativamente — Era uma moça ainda jovem...
Avancei um pouco movido pela curiosidade.
Foi aí que a vi...
O sangue se espalhava pelo seu peito mudando o tom da camiseta que vestia. Na folha de jornal, que lhe cobria a cabeça, embora manchada com espessos borrões vermelhos escuro, ainda era possível ler a noticia do acidente com o avião da Pan Am que caíra na selva amazônica em abril. Pela cor da blusa desconfiei... Mas foi só quando uma mulher negra se aproximou e lhe descobriu a face que tive certeza... O rosto embora levemente deformado de um lado, ainda era reconhecível... Era a torcedora do América, minha vizinha do segundo andar... De olhos abertos, parecia ter antevisto a morte.
Subi as escadas devagar. Algumas pessoas dos outros andares desciam apressadas. Uma senhora muito clara de robe azul e chinelas pantufas perguntou-me ao passar o que tinha acontecido. Não respondi. Tive receio de que minha voz saísse embargada. Apenas apertei-lhe o braço como num consolo e olhando-a, numa piscadela rápida, apertei os lábios.
Sentei-me taciturno na poltrona do quarto. Fiquei analisando pela janela estreita os encaixes precisos na parede do prédio vizinho. Quebrando a monotonia da horizontalidade dos tijolinhos vermelhos, de alto a baixo, a cada determinada distância, um grupo de tijolos era combinado diagonalmente de modo a formar um losango perfeito. Verticalmente entre uma coluna de losangos e outra havia um espaço, e nesse espaço uma faixa preenchida com argamassa branca. A próxima sequência era previsível, pois se repetia.
“Mas a vida não era assim...” Vagueei em pensamentos fechando os olhos e recostando o pescoço para trás... “Não se pode reprisar o passado”.
— E eu quase não a percebia... Era só a moça do andar de cima... Não sei nem como se chama... — reclamei, com voz melancólica, fincando os cotovelos nos joelhos e meneando a cabeça pendida presa entre as mãos.
Apoiei-me nos braços da poltrona e vagarosamente me levantei.
Fiquei observando o vão entre os dois edifícios. Uma senhora grávida de blusa amarela varria lá em baixo.
— Ela tinha os olhos azuis... — murmurei
Nunca mais encontrei o bolo de cenoura na minha porta.
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