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PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: JEFFERSON GOMES PASTORI

SOBRE O AUTOR


Nascido em Mogi das Cruzes e formado em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista, Jefferson Gomes Pastori é repórter cinematográfico e radialista. Os textos 'Florão' e 'Galo de Briga', finalista e semifinalista do concurso Prata da Casa, são parte de um projeto multimídia de um universo ficcional de mais de 300 personagens. O objetivo desse projeto é, em um futuro próximo, apresentar esses personagens e suas tramas para o grande público, tanto na literatura quanto em mídias interativas e no vídeo.



A CRÔNICA SEMIFINALISTA


GALO DE BRIGA


Minha carreira no jornalismo começou com luta de galos.

Em maio de 1961, meu editor no diário A Manhã Paulistana me mandou cobrir uma rinha de galo na Penha, zona leste de São Paulo. Os operários das fábricas da região gastavam uns bons cruzeiros nessa rinha, sem dar conta de que Jânio Quadros era presidente (ainda!), nem que ele emitiu um decreto proibindo a detestável atividade. Obviamente, diversão da plebe, populacho, povão ou povinho… quem quer desdenhar, que escolha. Mais nobre do que aves se bicando para o prazer humano seria ver dois humanos se batendo em um ringue de boxe. E o mais famoso à época era o peso-galo Éder Jofre que naquele ano, consagrado pelo cartel de vitórias, lutava nos EUA. Porém, ainda havia bons boxeadores no Brasil e um deles, ali mesmo na Penha, fazia apresentações amadoras de tirar o fôlego. Se Éder Jofre era apelidado de o Galo de Ouro, Jonas Gomes da Costa era o Galo de Briga.

Não era muito famoso fora do círculo de trabalhadores da região. E nem devia ser sua intenção, já que conta-se ter recusado propostas de agenciamento. E não há muita história a seu respeito. Operava máquinas pesadas em uma fábrica de peças automotivas, costumava fazer caridade na Igreja do Rosário dos Homens Pretos da Penha, não tinha família conhecida. Nos fundos de uma padaria, ao redor de um ringue amador, os por-assim-dizer amigos de Jonas descreveram-no como um homem quieto, tímido, focado em treinamentos e aparentemente conhecedor de outros tipos de luta além do boxe. A figura introspectiva e disciplinada de Jonas atiçou minha curiosidade e decidi acompanhar algumas de suas apresentações. Era um boxeador técnico, como Éder Jofre, com braços longos e um direto cirúrgico e definidor. Porém, sua movimentação no ringue era bem característica, deixando claro que sua agilidade poderia ser fruto de outras técnicas marciais. Em uma luta difícil contra um argentino, o juiz o penalizou por levantar o joelho como se fosse aplicar um golpe de muay thai; um equívoco que não lhe deixou escapar a vitória no sexto round. Nesse dia, uma loira muito espirituosa (a peruca se esforçava para se manter em sua cabeça conforme torcia por Jonas) fofocou-me no corredor dos vestiários que o nobre boxeador peso-galo já havia vencido o próprio Éder Jofre em um desafio não-oficial. Ou um primo, ou um parente distante, ela não sabia muito bem; de fato, ela não podia confirmar o que dizia, mas a performance da noite deixou claro que Jonas Gomes da Costa tinha garra suficiente para qualquer luta.

Em minha mente, na rinha de galo, essa garra voltou como um direto. Um dos organizadores não gostou que estivesse fazendo perguntas e me interpelou no meio da rinha. Em três segundos, uma muralha de apostadores se formou entre mim e a rinha de galos. Ainda não era uma época em que corpos de jornalistas fossem frequentemente atirados em rios, mas acontecia e eu estava bem próximo ao Tietê. Então, em óbvia desvantagem numérica e percebendo o brilho de um revólver, comecei a rezar baixinho

Das vigas de madeira no teto, o Galo de Briga saltou e pousou atrás do paredão. Punhos baixos no final dos longos braços relaxados, como se o número de oponentes não fosse nada. O primeiro ataque com uma enorme chave inglesa foi desviado três vezes antes de um nocaute com um golpe na nuca. O paredão avançou, mas ele soltou bombas de fumaça para desorientar e começou a caçar um por um através da névoa. Em um ambiente fechado e mal iluminado, a covardia toma conta. Uma lamparina de querosene se espatifou e os galos da rinha se juntaram ao desespero. Todos abandonaram o galpão em chamas. E no meio das chamas, o Galo de Briga desapareceu. Porém, os movimentos dentro do galpão denunciaram para mim: o Galo de Briga era Jonas Gomes da Costa.

Acompanhei suas poucas aparições nos anos seguintes, lutando contra militares. Jonas havia se tornado um subversivo depois de 1964 e participado do sequestro do embaixador norte-americano em 1969. Era o início do período mais sangrento da ditadura militar. Em um punhado de fotos e desenhos de retrato falado, pude reconhecer ao seu lado a loira desinibida como Bela 90, uma guerrilheira pouco conhecida que usava duas pistolas calibre .45 e uma máscara abaixo dos olhos. Mais tarde, foi identificada como Vera Pestana, esposa de um médico da alta sociedade carioca que auxiliava os movimentos revolucionários de esquerda. Não é certo que tivesse um relacionamento mais íntimo com Galo de Briga, mas haviam muitas fotos de suas parcerias. Logo após o fim do sequestro do embaixador, um grupo de  paraquedistas liderados por José Augusto Salles, o Águia Branca, o capturaram em uma emboscada com Bela 90 e mais dois revolucionários. E o confronto dessas aves de rapina deixou uma controvérsia para os historiadores.

Galo de Briga foi ferido gravemente na cabeça por Águia Branca, o que decidiu o combate e fez com que Jonas fosse levado ao cárcere da Operação Bandeirante. Um ferimento tão contundente que deixa a dúvida razoável se Águia Branca realmente o matou, se Jonas Gomes da Costa morreu sob tortura ou se teve, ao menos, atendimento médico digno quando chegou ao DOPS. Há especulações ainda de que tenha sido morto por agentes no caminho até as instalações. Talvez nunca se saiba, pois nunca foram encontrados arquivos ou documentos detalhados. As únicas informações sobre o encarceramento do Galo de Briga são que foi torturado por cerca de quinze homens (policiais e agentes militares) e o suposto desprezo que o delegado Sérgio Fleury teria pela figura de Jonas, como um guerrilheiro menor e que não representava grande vitória. Talvez por isso alguns detratores de Fleury apostam que ele morreu no cárcere, aguentando a tortura até onde pode, enfrentando seus algozes de pé e que esse desprezo era uma disfarce para o ódio e rancor que o delegado possuía.

Depois do Galo de Briga, Raio Vermelho, Brasa e Faísca também caíram nas garras do Águia Branca, que nunca assumiu a culpa sobre a morte de Jonas. Era um protegido do general Mourão Filho, um integralista das antigas que teve grande admiração por Teodoro de Miranda Salles, pai de José Augusto e que atuou nos anos 1930 como Sigma. José Augusto teve grande atuação nas operações Gaiola e Popeye, dentro do golpe de 1964 em Minas Gerais, garantindo seu êxito (o que deu ao Águia Branca, vestindo seu icônico casaco verde, o apelido/ codinome de “espinafre do general Mourão”). Ainda assim, isso não o livrou de ser confinado em uma câmara de contenção estática por quase 40 anos com outras dezenas de vigilantes e superseres, como revelou a Comissão da Verdade de 2011. Sua situação atual, bem como a de seus outros companheiros, é um limbo jurídico, mas há um movimento para reverter seu status de anistiado político. Sua defesa é de que seria o bode expiatório que salvaria os torturadores de Jonas, estes os verdadeiros assassinos.

José Augusto Salles ainda rebate as acusações, citando possíveis crimes cometidos pelo Galo de Briga, anteriores ao sequestro do embaixador norte-americano. Vera Pestana, que foi libertada na negociação do sequestro do embaixador alemão em 1970 e ficou exilada na Europa, eximiu Galo de Briga desses crimes e assumiu boa parte em depoimentos após seu retorno ao Brasil em 1988. José Augusto, ainda hoje, mostra documentos que não tem autenticidade reconhecida ou fala de arquivos que nunca foram encontrados. 

Uma guerra narrativa entre fascistas e comunistas que não mudou nada desde os anos 1930, quando Sigma e Raio Vermelho se digladiaram na praça da Sé. De fato, os anos 1960 ainda estão arraigados em nossas vidas. Toda arte, filosofia e discussão política ainda estão presas a 1968, mesmo com a revolução tecnológica do século XXI. A diferença é que as lutas se dão em uma arena global, com distâncias continentais em que os braços de Jonas Gomes da Costa não fariam diferença.

 Uma grande rinha de galos que nunca se bicam. Muito nobre, não é?


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