SOBRE O AUTOR
João Riehs Onofre nasceu na cidade de Guarapuava, no interior do Paraná. É psicólogo e possui título de especialista em Psicologia Escolar/Educacional pelo CFP – Conselho Federal de Psicologia. O conto selecionado, Forasteira, está incluído no livro Detetives Insólitos, publicado pela Kotter Editorial em 2022.
O CONTO SEMIFINALISTA
FORASTEIRA
Apesar de recentes lacunas descobertas em minha memória, lembro-me bem do dia em que desembarquei na rodoviária. Uma mistura de garoa e neblina havia adiantado o cair da noite e as luzes dos postes já estavam acesas. Ao descer do ônibus, senti o frio atingir meus ossos como ondas de raio-x. Tomei um café, mais fraco e frio do que gostaria. Na tevê da lanchonete, o telejornal passava uma matéria sobre patinação no gelo. Não tentei disfarçar as duas lágrimas que rolaram mansas, quase ao mesmo tempo, de cada um de meus olhos. Gosto de batizar as lágrimas que vertem de mim. “Lágrima de topada de mindinho no pé da estante”; “Lágrima de angústia inesperada e indefinida no meio da madrugada”; “Lágrima de crise de riso por motivo fútil ou banal...”
E estas duas irmãs, que eu trazia ao mundo agora, logo em minha chegada a esta nova cidade, como batizá-las? “Lágrima de alma fragilizada diante de uma faísca de beleza” poderia ser o nome de uma delas. Sabia que a outra seria mais difícil de nomear. Respirei fundo e encarei a tarefa. “Lágrima por um sonho sufocado”.
Quando criança, sonhava em me tornar bailarina ou veterinária, e eis que chegava nesta cidade para trabalhar com algo tão diferente, quase um oposto... Tudo ao meu redor pareceu coberto pelas cinzas de uma vida incinerada, uma vida que poderia ter sido e nunca foi.
Ao pagar a conta, fiz um comentário sobre o frio, em tom de gracejo, ao que o rapaz do caixa rebateu com uma impessoalidade que interpretei como amostra de antipatia. Nenhum esboço de sorriso ou emoção, sua boca parecia apenas um rasgo na face para que a voz pudesse passar para o exterior.
Perguntei ao taxista sobre algum hotel barato, que não fosse um muquifo. Pretendia passar alguns dias em um até achar um canto para alugar, preferencialmente um apartamento. Já havia feito uma pesquisa na internet, mas nada melhor que uma dica de quem conhece a anatomia da cidade. Ele me falou, com uma voz algo cansada, sobre duas opções. Minha forma de escolher foi pedir que seguisse para o que ficava mais perto.
Lembro-me de que no hall de entrada havia um longo tapete de cor clara, muito limpo, e que procurei chegar à recepção me esgueirando rente à parede com o intuito de não o sujar. Assim que me viu, um funcionário saiu de trás do balcão e veio me ajudar com a bagagem. Dei um sorrisinho meio constrangido e olhei para meus pés molhados, esperando algum tipo de empatia. A impessoalidade de seu semblante me deixou em dúvida entre cansado e antipático. Terminado o check-in, ainda me acompanhou até o quarto, mais uma vez carregando as malas. Perguntei o que havia de lazer na cidade, respondeu que me daria alguns folders com os atrativos turísticos. Entendi o recado, não estava mesmo a fim de conversa. Muito bem, sempre fui de respeitar as fronteiras de cada ser. Por fim, rejeitou minha gorjeta alegando que apenas cumpria seu trabalho. Pedi que me trouxesse também uma garrafa de vinho quando retornasse com os folders, um Merlot que não custasse mais que $50. Meu salário aumentaria consideravelmente nesta nova cidade, mas queria manter meus pés no chão e um referencial para a minha organização financeira sempre foi o máximo que estou disposta a pagar em uma garrafa de vinho.
Abasteci minha taça de acrílico e me sentei pertinho da janela. Aquele cenário de nevoa e frio não me trouxe melancolia, como poderia se esperar. Houve primeiro um esvaziamento, era como se não estivesse mais em mim mesma e, justamente por isso, pudesse estar em qualquer coisa. Poderia ser a lâmpada do poste, a taça, ou o vinho... Estranheza. Senti-me impressionada pelo fenômeno de ser possuidora de um corpo, de ter uma língua para sentir o gosto e um estomago para sentir o leve ardor do vinho que bebia. Aos poucos fui voltando a mim, recobrando a identificação com aquela imagem que me ensinaram que era eu. Me senti apertada em meu corpo, como pé calçado em sapato menor.
***
Demorei a dormir, e o sono que me faltou à noite veio me visitar pela manhã. O café já não devia estar mais sendo servido no hotel, então decidi dar uma volta até topar com algum lugar para comer. O céu azul do fim da manhã pareceu o prenúncio de novas vibrações. Assim que deixei o hotel, me vi obrigada a optar por uma direção. Não queria fazer isso aleatoriamente e não conseguia pensar em nada que me ajudasse em minha escolha. Sabia que se continuasse estaqueada na porta do prédio, acabaria chamando a atenção. Como disfarce, fiz o que todos fazem hoje em dia, coloquei meus olhos sobre o celular. Saí do sol e me encostei contra a aspereza úmida da parede. Avistei um morro arborizado, bastante distante, que funcionou como meu farol. Guardei o celular na bolsa e pus-me a caminhar. Não pretendia chegar até o morro, reforço que meu objetivo era encontrar algum lugar onde pudesse comer. O motivo pelo qual escolhi esta direção não envolve maior complexidade, gosto de morros e gosto de árvores.
Caminhei alguns minutos fazendo um exercício, o qual procurava esconder de mim mesma, para simpatizar com a cidade. Prestava atenção às floreiras coloridas e ignorava as calçadas esburacadas; me deliciava com o canto dos passarinhos e reprimia a raiva contra motoristas que não respeitavam a faixa... Assim que avistei uma praça relativamente distante, soube que a cruzaria. Afinal, a melhor distância entre dois pontos é sempre uma praça. Esta, pobrezinha, era do tipo que havia sido esquecida pela administração municipal. Aqui e ali, o tapete de folhas caídas revelava um pedaço do calçamento encardido.
Logo que senti o cheiro de pipoca, antes de avistar o carrinho do vendedor, levei a mão à bolsa para procurar minha carteira. Um pacote pequeno, doces e coloridas, para associar à infância e, consequentemente, computar mais um ponto para a cidade. Seria este o mecanismo por detrás? Sinceramente, penso que não. Localizei o carrinho e, enquanto caminhava até ele, ouvi uma criança chamando pela mãe. O desespero germinante podia ser facilmente percebido nos gritinhos contidos. Uma menina, de uns sete ou oito anos, com o pezinho preso na balança. Corri até ela, que já estava com aquela inconfundível cara que precede o choro. O procedimento foi bastante simples, bastou girar um pouco seu pé e pronto. A mãe, assustada, voltou correndo. Estava no carrinho de pipocas. Não consegui não reparar, com certo pesar, que ela deixava atrás de si um rastro de pontinhos brancos pelo chão e que, quando chegou até nós, o pacote que trazia em mãos estava pela metade.
Sua preocupação era comovente e logo procurei tranquilizá-la explicando o que havia ocorrido, “não foi nada, uma balança esfomeada tentou morder o seu pé, mas não desconfiava que teria pela frente a mocinha mais valente da cidade”.
“Do mundo todo”, me corrigiu a pequena. “Sou a mais valente do mundo inteirinho...”
“Claro, que cabeça a minha! A menina mais valente de todo o planeta”.
“Obrigada pela ajuda, viu”, disse a mãe com uma gratidão que se notava sincera. “Ainda bem que você estava por perto, se não ela podia ter se machucado de verdade”.
“Olha aqui o roxão!”, falou a pequena levantando um pouco a calça, como se dissesse: “Como assim se machucado de verdade?!”. Que somente ela pudesse ver a marca era um detalhe.
“Pobrezinha...”, disse a mãe dando uma piscadela para mim. “Quando a gente chegar em casa, a mãe passa um remédio”.
Nos apresentamos, a filha se chamava Sara e a mãe Izabel. Nomes bíblicos, pensei comigo sem lembrar quem eram exatamente as personagens. O convite para tomar café com elas foi mais que oportuno. O frango do meu folhado poderia ter um pouco mais de sal, de resto não havia do que se queixar. Falamos um pouco sobre nossas vidas. Em geral, o tema me causa arrepios, mas me vi surpreendentemente falante. Talvez porque me sentisse à vontade; talvez porque me sentisse carente; talvez por ambos os motivos ou nenhum dos dois. Disse que estava ali temporariamente. Tinha ido a trabalho, expliquei a ela que mudar de cidade era comum em meu ramo, que não havia me decidido se achava isso bom ou ruim. Ela pareceu tentar me convencer de que uma vida enraizada era melhor, o que me causou um ligeiro incômodo. Deve ter se dado conta disso e a conversa logo mudou de rumos. Contou-me um pouco sobre sua vida, viviam num apartamento perto dali, ela e a filha, trabalhava numa papelaria e fazia um curso técnico de enfermagem no período da noite. Tinham uma cachorrinha chamada Biruta, gostavam de fazer caminhadas e ir ao cinema. Trocamos telefones e combinamos que manteríamos contato para marcar algum programa.
Caminhei a tarde toda pela região central. Visitei o pequeno museu municipal, que me surpreendeu positivamente ao dar mais destaque para os nativos indígenas do que para os colonizadores. A responsável pelo museu falou ininterruptamente durante todo o tempo que estive lá. É verdade que me senti sufocada, algumas vezes eu queria apenas observar um artefato ou uma foto e ela já chegava despejando um monte de informações ou tentava me conduzir a outro item. Parecia um robozinho cumprindo sua função. Ao assinar o livro de visitas, me tornei mais compreensiva, a última assinatura datava de dois dias atrás.
De volta ao hotel, pensei um pouco sobre minha conversa com Izabel. Eu me enxergava sempre nesta sala de espera da vida, no colégio esperava pela universidade, na universidade esperava pelo trabalho, na solidão esperava pelo amor, no amor ansiava pela liberdade... Minha vida toda fugi do presente. E quando ele me alcançava, unia todas as minhas forças num movimento e o atirava para o futuro. Liguei na recepção e pedi um vinho. Quando o rapaz me entregou a garrafa, fiz uma piada sobre acabar com o estoque da adega. Ele rebateu dizendo que não, que eles deviam ter mais de 150 rótulos estocados e que faziam reposição periódica. Fiquei em dúvida se o sujeito estava sendo grosseiro ou se tinha algum tipo de transtorno, tinha lido a respeito de alguns quadros em que a pessoa não consegue distinguir o sentido figurado do literal e que, consequentemente, não entende piadas e gracejos. Ficar remoendo a questão não me levaria a lugar algum, então pus uma música para tocar no celular e bebi meu vinho. Começaria a trabalhar no dia seguinte, mas somente depois do almoço, uma das poucas coisas que gostava no meu trabalho era o horário.
***
Voltando a pé do trabalho à noite, a neblina dá as caras novamente. As luzes dos postes e dos faróis dos carros são borrões luminosos que brotam do nada. A ausência quase que completa de pedestres na rua me soa algo macabra. Depois, solidão. Sentimento de ser a única pessoa da Terra. Lembro-me de minha mãe, tenho vontade de escrever uma carta a ela. Ela sempre gostou de trocar cartas. Era eu quem costumava pegá-las na caixa de correio quando pequena, e minha mãe me deixava tirar os selos usando o bafo da chaleira. As cartas foram deixando de chegar à nossa casa. Por mais que minha mãe ainda resistisse defendendo o posto de remetente, não havia mais batalha a ser lutada. Os últimos guerreiros a alcançarem nossa caixa de correio foram os cartões postais e os de fim de ano.
Na carta que escreveria, lhe diria que a lembrança mais remota que carrego comigo é dela me banhando na infância. Uma banheira de plástico cor de rosa, alguns brinquedos coloridos boiando à minha frente, uma sensação de bem estar, que, em parte, devia ter relação com a água morna, mas que, não tenho dúvidas, se devia principalmente ao toque de suas mãos desenhando o contorno de meu corpo. Era como se criasse cada parte de mim em movimentos mágicos de maestro regendo a orquestra. Ao mesmo tempo, havia uma certa distorção de limites, era difícil definir onde acabavam suas mãos e onde começava meu corpo...
Vejo um vulto pincelado na névoa e, como numa freada sem aviso, recordo que estou sozinha num lugar a que não pertenço. Imagino que o vulto esteja a uns 30 metros a minha frente, minha estimativa de distancia era baseada puramente na intuição. Ele sai da calçada e vai para o meio da rua, onde fica cravado. Penso em dar meia volta. Penso em seguir adiante. E enquanto penso, continuo parada. O vulto, que presumo se tratar de um cachorro descomunal, começa a se mover de modo, a princípio, hesitante, até que finalmente engata uma corridinha e desaparece em uma esquina.
Sinto alívio e as curvas das pernas moles, você irá sobreviver, digo a mim. Permaneço parada no mesmo lugar. Uma pessoa chega ao meu lado e me pergunta se está tudo bem. Não estou sozinha... Não estou sozinha! Digo que sim, tudo bem, enquanto travo comigo uma batalha para resistir a abraçar aquela pessoa, uma batalha contra o meu desejo de sentir sua presença com minha pele. A civilização que em mim habita sai vencedora e, enquanto assisto a pessoa se afastando a passos lentos que ecoam sutilmente do contato da sola contra os paralelepípedos, sinto o abraço se perdendo no vácuo das ações que poderiam ter sido e nunca foram. Pelo canto externo do olho direito, sou surpreendida por uma lágrima. “Lágrima por um abraço não nascido”. Finalmente, volto a caminhar e, para a minha surpresa, as pernas seguem a marcha com perfeição. Após alguns metros, detenho-me outra vez. Novamente assustada. Desta vez, o que me espanta não vem de fora. Uma parte de mim alerta que há algo de errado com o nome recém atribuído à lagrima. O nome se descolou dela porque não a pertencia, porque havia outro nome, que foi, como que magneticamente, atraído a ela: “Lágrima por um abraço reprimido”.
***
O dia que havia colocado como limite para deixar o hotel e procurar por um lugar para chamar de casa finalmente chega. Não consigo fazer determinadas coisas sem inspiração, e não consigo resistir a outras quando estou inspirada. Justamente por isso, decido ir à papelaria. O desenho me acompanha desde criança, sem técnica ou pretensão artística, apenas o prazer de deslizar o grafite sobre a folha e ver as imagens irem se formando. Sinto que desenhar tem algo de sonho. Pesquiso na internet o endereço da papelaria em que Izabel trabalha e, vinte minutos de caminhada depois, chego lá. É uma loja grande, um balcão imenso de três lados, atrás do qual se vê uma movimentação contínua de funcionários para atender filas de clientes. Fico sem saber direito o que está acontecendo até que recordo que a volta às aulas se aproxima. Penso em meu tempo de escola, costumava acompanhar minha mãe na compra de materiais. Os lápis de cor eram o clímax. As cores eram mais frescas naquela época, ainda não tinham sido gastas pelos meus olhos e pelos olhos dos outros. O mundo era mais mágico porque havia essas lacunas que eu podia preencher com aquilo que criava. Depois, fui aceitando as verdades dos homens, de ângulos retos, paredes de concreto e recipientes esterilizados. Em algum lugar nesse percurso, a mágica se perdeu.
Na minha cestinha, coloco três lápis HB, uma borracha e um apontador. Há outros materiais aos quais somente os atendentes têm acesso, concluo que as tintas guache devem estar entre eles. Decido que as comprarei como forma de protesto contra o mundo adulto. Não, a proposta envolve mais que um simples protesto, é um desejo de mudança. E não comprarei pinceis, pintarei com os dedos.
Entro na fila. Não demoro a reconhecer Izabel, bastante atarefada, andando de um lado para o outro atrás do balcão para atender aos pedidos que lhe fazem. Chega a minha vez, digo ao funcionário que vou esperar para ser atendida por Izabel e saio de lado, abrindo passagem para os outros clientes. O rapaz a avisa que estou à sua espera, ela olha em minha direção, sorrio e aceno, ela não responde ao meu cumprimento. Estranho o fato de ela não dar nem ao menos um sorriso. Cogito possibilidades, não teria me reconhecido? Achou que havia ido lá para jogar conversa fora e atrapalhar seu trabalho? Estava muito concentrada no que fazia? Penso em ir embora. Mas, caso partisse, jamais saberia o que realmente havia acontecido. Por outro lado, me parecia ridículo continuar ali esperando, afinal, mal a conhecia. Ainda assim, entre o ruim e o pior, escolho esperar. Ela termina de atender a pessoa, vem até mim, me cumprimenta com uma impessoalidade metálica e pergunta como pode ajudar. A princípio, penso que é uma piada. Peço para ver algumas canetas nanquim. Ela se afasta e desaparece entre algumas prateleiras. Imagino que voltará com as canetas e com um sorriso zombeteiro. Só acerto as canetas. Peço algumas folhas A3 e tintas guache. Levanto comigo mesma a hipótese de que ela possa estar esperando o fim da compra para revelar a brincadeira, então riremos, nos abraçaremos e combinaremos um café. Aguardo ela passar o leitor pelos códigos de barra. Seus olhos estão focados nos produtos. Quando nossos olhares finalmente se conectam, ela me entrega um cartão e diz que posso me dirigir ao caixa. Enquanto caminho para pagar a conta, inocentemente, espero por um chamado. Se tivesse que ranquear meus mecanismos psicológicos de defesa, a negação certamente estaria no pódio.
Quando ponho meus pés para fora da papelaria, minha mente está acelerada rumo a todas as direções, mas não chega a lugar algum. Meu coração está apertado como um tronco sulcado por cipós. Sinto que o impacto vem de algo maior que o episódio, sinto-o como uma alegoria, uma parábola que representa isso que se repete entre as pessoas ao longo do tempo e em todos os lugares. Isso que não sei o nome. E que talvez doa mais por não saber, ou não. Uma lágrima escorre por meu rosto, me dou conta de que estão frequentes nesta nova cidade, não a enxugo, deixo que deslize e, quando atinge meu queixo, me sento num degrau da escadaria de um edifício e espero. Quero derramá-la sobre o mundo, quero que caia sobre a calçada e que seja absorvida pelo cimento. Percebo que não cairá, lhe falta volume para se desprender de mim. Sou golpeada por esta nova frustração, que faz outra lágrima brotar e percorrer a mesma veia aberta pela primeira e, então, como uma aliada que houvesse ido ao socorro da companheira, as duas despencam. “Lágrimas por um mundo de merda”.
No caminho de volta para o hotel, passo diante de um Café quando resolvo parar. Normalmente não bebo antes de trabalhar, mas já não havia mais nada de normal em minha vida. Peço um Mojito e depois uma Tequila Sunrise. Os drinks são absorvidos por meu estomago vazio como chuva no deserto. Quando volto às ruas, tudo, inclusive eu mesma, adquire nova densidade, menos compactada. A gravidade parece ter algo de lunar. Passo diante de uma casa com um jardim amplo, muito bem cuidado, onde se vê estátuas dispostas. Uma branca de neve rodeada pelos sete anões. Não vejo originalidade alguma na escolha e, se tivesse um jardim, nem mesmo cogitaria este tipo de decoração. Ainda assim, detenho-me junto à grade e observo. Surpreendo-me ao notar nos anões um semblante ameaçador. Sorriso sádico em um, olhar malicioso em outro... um terceiro com um machado levantado. E no rosto da delicada princesa, um discreto risinho, que escondia algo. Sob sua superfície, como lençóis freáticos que desenham veias indigentes pela terra, escondia-se medo... pavor! Decifro aquele teatro doentio, mas me falta compreender uma coisa, por que ela ainda disfarça o medo? Por que participa daquela encenação?
Sigo meu caminho, dentro de duas horas devo entrar no trabalho e preciso comer algo. Talvez um café preto e forte também. As pessoas circulam pelas ruas indiferentes umas às outras, indiferentes a mim, indiferentes a si mesmas, à verdade original que carregam dentro de suas células. Logo adiante, avisto cachorros latindo, envolvidos em algum tipo de confusão. Fico alerta, ando com essa sensação de ameaça permanente. No entanto, não mudo meu trajeto. Logo descubro a razão do alvoroço, um cachorro e uma cachorra, presos um ao outro por suas genitais, tentam desesperadamente se separar e são alvejados por uma dor lancinante. Vejo na cena um simbolismo universal. A atração irresistível, seguida pela necessidade de separação... e pela dor.
***
Os dias vão se passando e sigo no hotel. Como culpados pela minha falta de iniciativa para ir atrás de um lugar para chamar de casa, aponto meu humor, minha solidão, meu cansaço... Sei que não se trata disso e tento encontrar o motivo verdadeiro. Vivi muito tempo mentindo a mim mesma, sempre que percebo algum sinal de que este mecanismo está atuando novamente, tiro um tempo para tentar me desmascarar. “Vamos lá, o que você está tentando esconder? Você não precisa mentir, não precisa ter medo. As coisas são diferentes hoje, vou te compreender, vou saber te perdoar”. A verdade, ou ao menos aquilo que acredito que seja, não demora a se revelar, continuo no hotel porque não estou preparada para o ato de criar raízes. Não me sinto pronta para admitir que estou nesta cidade para morar, e não apenas para passar mais alguns dias. Recordo que a vida não costuma esperar que estejamos prontos; creio que é melhor não generalizar, recordo que minha vida não costuma esperar que esteja pronta. Mas não consigo, hoje não consigo dizer que aqui é o meu lugar. Quem sabe amanhã, se acordar e for primavera, ou o dia estiver como se fosse primavera, e uma brisa fresca afagar meus cabelos quando sair à rua... Depois de tomar uma xícara de um café encorpado e um cheiro qualquer lembrar minha infância ou lembrar os que amo. Quem sabe amanhã, se um homem bonito me tratar com gentileza ou se pelo caminho acabar entrando em uma rua em que as árvores me ofereçam sua sombra e as flores suas cores. Hoje não, quem sabe amanhã.
***
No começo da noite, voltando do trabalho para o hotel, vejo algumas pessoas fantasiadas de duendes, elfos, bruxas, orcs e outros seres fantásticos. Recordo que está acontecendo esta festa na Praça da Revelação, pessoas fantasiadas, barraquinhas vendendo comidas cheirosas e chope gelado. Decido ir até lá. Acompanho, rumo à estação central, um grupo de magos e bardos que entoam uma canção que envolve cachimbos, hidromel e uma donzela de beleza ímpar. A cantoria continua dentro do metrô, e eu até arrisco acompanhar alguns versos. Fico maravilhada com aquele espírito de companheirismo e pela primeira vez em muitos dias me sinto bem. Sim, podemos cantar juntos!
Na praça, o cenário está incrível, a sensação é de se estar em um vilarejo medieval. Quase todos estão caracterizados, de qualquer forma, não me sinto deslocada por estar com a típica roupa do trabalho. Peço uma caneca de chope e um espetinho e me sento para assistir a um grupo dançando ao som de flautas e bandolins. Os autofalantes anunciam que a fogueira será acesa em breve e as pessoas vibram como se a atração principal houvesse subido ao palco. Tomo mais um chope e meu rosto e mãos amortecem. Sinto que, de certa forma, o efeito anestésico também se estendeu às feridas da minha alma. Dou uma volta pelas barraquinhas, que vendem todo tipo de artigo relacionado à fantasia medieval. Compro um colar com um pingente metálico de uma árvore circundada por runas e uma presilha para cabelo em forma de coruja. Fogos de artifício colorem o céu e a fogueira é acesa. Danço ao som de música celta junto de um grupo de umas quinze pessoas. Aceito e sou aceita. Paro somente quando sinto as curvas das pernas amolecerem. Respiração ofegante, coração palpitando, roupas grudadas no suor que se espalha pela pele. Sinto meu corpo e me dou conta de que ando desligada dele. Prometo a ele que não vou mais negá-lo. A partir de hoje, não estaremos juntos apenas na dor, mas também na alegria. Vamos celebrar juntos!
Peço mais um chope e sento para descansar. O rapaz que me serve está caracterizado de elfo, acho-o bonitinho. Pergunto o que está achando da festa, ele responde que muito boa. Insito e pergunto se está gostando do visual elfo. Diz que é parte do trabalho, pede licença e volta para trás do balcão. Não me surpreendo com a receptividade, e não sei se isso é bom ou ruim. O fluxo de pessoas ainda continua grande, a música segue animada, mas algo me diz que o fim de noite se aproxima para mim. Reparo que quase todos que circulam ao meu redor estão acompanhados, amigos, filhos, namorados... Penso um pouco sobre isso, talvez amanhã a solidão me doa, mas hoje estou feliz por estar sozinha, hoje minha liberdade me preenche.
“Você não é daqui...”, uma voz dispara de algum lugar e quase me abaixo para me proteger. Me volto para o lado e vejo um senhor sentado a uma mesa próxima à minha. Num primeiro momento, penso que está fumando um cachimbo, logo percebo que está apenas segurando seu copo como se fosse um cachimbo.
“Posso?”, diz pedindo permissão para se sentar junto a mim.
Consinto. Ele se movimenta usando uma bengala. Seus óculos redondos e sobrancelhas hirsutas lhe dão um aspecto de coruja. Nos apresentamos.
“Acho que nos conhecemos de algum lugar...”, ele diz.
Analiso sua fisionomia com cuidado.
“Creio que não, talvez tenha me confundido com alguém”.
“Curioso, tenho quase certeza que já conversamos antes”, diz apertando um pouco os olhos enquanto me encara.
“Acho improvável, sou boa para recordar das pessoas. Por que o senhor disse que não sou daqui?”
“Acertei?”
“Acertou. Como descobriu?”
“Também não sou, talvez os forasteiros se reconheçam. E porque acabei ouvindo sua conversa frustrada com o atendente. Perdoe a indiscrição, costumo colocar na conta da idade avançada”.
“Minha conversa revelou que não sou daqui?”, pergunto sentindo meu rosto queimar.
“Você parecia esperar algum tipo de empatia, uma interação normal. Parecia não saber que é inútil perguntar sobre o tempo, se gosta do que faz, ou mesmo contar-lhe uma piada”.
Sinto-me aturdida por sua fala porque, apesar de fazer total sentido considerando minhas relações até então estabelecidas na cidade, não deixa de ser uma fala absurda.
“Não entendo. Por que não deveria esperar ter uma conversa normal com as pessoas?”
“Você é esperta, seus olhos afiados quase me espetam. Estou certo que já notou que há algo de estranho nas pessoas daqui”.
“Não gostam de mim, talvez eu represente algum tipo de ameaça para elas. Não sei de que forma poderia ameaçá-las, mas foi a única coisa em que consegui pensar”.
Ele chama o garçom. O atendente não é o mesmo que me serviu. Pede mais um chope. Quando o rapaz começa a se afastar, interrompe-o e diz:
“Pensando bem, acho que vou mudar meu pedido. Para alguém da minha idade, um leitinho morno caberia melhor”.
“Desculpe, senhor, servimos somente sucos, chopes, cervejas e alguns tipos de drinks”.
“Compreendo, sendo assim, ficarei com o chope mesmo”.
“Perfeito, senhor. Algo mais?”
“Por enquanto, não. Obrigado”.
Nos olhos do senhor há algo de constatação, como um professor que acaba de ilustrar sua teoria através de um exemplo prático, e também de desolamento.
“Viu só, não parece se tratar de hostilidade, agressividade...”, ele diz.
“Não, parece pior do que isso. Parece vazio”.
***
Visito um apartamento para alugar situado razoavelmente próximo ao meu trabalho. Decido pegar as chaves na imobiliária e ir sozinha. A localização me agrada, um bairro sem a agitação do trânsito. Há algumas árvores pela redondeza e da sacada ouço bem o canto dos passarinhos, o que me passa a sensação de que o apocalipse ainda não chegou. Por falar em sacada, esta é uma das partes do apartamento que mais me empolga, imagino suculentas dispostas sobre o guarda corpo e samambaias penduradas no teto. Me vejo sentada confortavelmente numa cadeira reclinável num sábado à tarde, lendo um livro enquanto beberico um mojito.
A cozinha americana me agrada. O balcão em granito não me conquista, mas é algo que posso resolver sem maiores dificuldades, posso cobrir com uma tábua rústica ou inventar alguma decoração com silicone. Gosto do tamanho da sala de estar, imagino como poderia dispor meu toca discos, meus móveis e meus quadros. Mas é o banheiro, mais especificamente uma banheira, bastante simples, que me conquista. Me vejo dentro dela após um dia desgastante de trabalho, água quente abraçando meu corpo por inteiro, uma taça de vinho para completar a cena.
Passo para o quarto e meu corpo se rebela. Sinto como se meus próprios órgãos quisessem me atacar, pontadas na barriga, aperto no peito, pulmão comprimido... Me agacho e o único pensamento que me ocorre é o de morte. Corro do quarto para o banheiro, meu estomago se contrai em espasmos, mas não vomito. A sensação de corpo em colapso persiste, a morte me reodeia como uma fumaça invisível. Penso no absurdo, no grande absurdo dos caminhos de minha vida. No absurdo que seria morrer agora, neste apartamento vazio, nesta cidade estranha. Não, o problema não está na fase da minha vida, nem no lugar em que ela termina. O absurdo está no fim em si, no vazio que me apaga e que, neste ato, apaga não só aquilo que eu poderia vir a ser, mas também tudo aquilo que fui. Aos poucos o corpo vai recobrando seu ritmo normal e aquela voz da razão, que me diz que ainda não é a morte definitiva que me visita, ganha força.
Tranco o apartamento e desço as escadas me apoiando no corrimão. Dirijo com alguma dificuldade devido ao tremor das pernas e à desorientação. Erro as ruas algumas vezes até finalmente chegar à imobiliária para entregar as chaves. Digo que não ficarei com o imóvel, a funcionária me faz algumas perguntas, que respondo de maneira evasiva. No caminho de volta para o hotel, sinto um tipo de esvaziamento, como se meu corpo fosse oco, como existisse apenas esta fina camada de pele envolvendo o nada. Subo para o meu quarto e me deito. Estou exausta, mas não consigo dormir. Penso em abrir a janela e imediatamente a ideia me soa ridícula. Por que abri-la? Por que deixar o ar entrar? Nenhuma brisa trará alívio ou respostas. Lembro que em breve terei que me levantar para trabalhar e a falta de sentido que habita nisso, ao mesmo tempo em que me surpreende, parece encaixar perfeitamente nesta cadeia de episódios em que me vejo emaranhada. Estou deitada sobre o meu lado esquerdo, uma lágrima escorre, contorna meu nariz e quase mergulha no outro olho, desvia por pouco e segue em direção à minha orelha. Tento nomeá-la, é em vão. Lágrima sem nome.
***
Os dias se sucedem e permaneço no hotel. A naturalidade com que os funcionários parecem encarar minha permanência me surpreenderia se não estivesse cada vez mais habituada ao incomum. Não tenho atendido as ligações de minha mãe ou de minha irmã, ainda assim, mando mensagens de texto dizendo que está tudo bem. Não teria energia para as mentiras que uma conversa exigiria, dizer que estou me adaptando, que fiz amizades e que já tenho um lugar para chamar de casa.
Num sábado, deixo o hotel rumo à padaria e, como de costume, opto por cortar a praça. Meu humor está melhor, talvez por ser sábado, talvez por ter dormido bem à noite, talvez porque voltei a desenhar... Caminho observando os frutinhos das árvores que se espalham pelo calçamento, quando ouço alguém me chamando. Izabel vem caminhando em minha direção com um sorriso estampado no rosto; ao fundo, identifico Sara brincando na balança. A primeira ideia que me ocorre é a de fuga, logo abafada pelas normas civilizadas, que em mim sempre encontraram terreno fértil desde a infância. Ela me cumprimenta com animação, retribuo com uma sobriedade que faz fronteira com a antipatia. Me convida para um café, olho para o relógio e digo que tenho um compromisso, talvez outra hora. Sinto minha respiração desregulada e preciso fazer esforço para que minha voz saia. Temo uma crise como a do apartamento e sigo meu caminho sem olhar para trás. Nessa noite, bebo uma garrafa de vinho sozinha em meu quarto e pela primeira vez cogito ir embora. Tenho um bom emprego e estabilidade, certamente não vou encontrar de imediato outro salário parecido. Talvez demore até para encontrar outro trabalho. Mas o conforto financeiro não pode ser uma justificativa aceitável para o sofrimento. Ao menos, não para mim.
***
Estou voltando do trabalho pensando se janto pelo caminho ou se peço algo para comer no hotel quando me deparo com esta imagem onírica, um cavalo preto e forte, como estes que ilustram livros sobre antigas batalhas, parado sozinho no meio da rua. Noto que não está equipado com nenhum item de montaria. Paro e reflito sobre o que fazer. Olho ao redor, percebo que as ruas estão desertas e imediatamente me dou conta de que estou no mesmo lugar em que, tempos atrás, me deparei com aquele cachorro amedrontador. Sinto que deve haver na situação algo para além da coincidência, algo de macabro. Mantenho os olhos fixos no cavalo, que tem as orelhas em pé como dois radares. Dou meia volta para desviar por outra rua e ouço o som de cascos contra o asfalto. Começo a correr e só depois me certifico daquilo que temia, o cavalo está trotando em minha direção. Exijo de minhas pernas o máximo que podem dar e perco-me em ruas estreitas pelas quais nunca antes havia passado. Meu corpo cede esgotado e sento-me ao chão com as costas apoiadas contra uma caçamba de lixo com a esperança de conseguir me esconder. Não ouço mais o som dos cascos. Espero. O esforço físico, a tensão e o mau cheiro da caçamba me causam náuseas. Meu estômago está vazio, vomito apenas um pouco de um líquido transparente e viscoso.
Ponho-me me em pé e tento achar a saída daquele beco. Busco em meu celular a rota para a estação de metrô mais próxima. O mapa parece desatualizado e sou obrigada a fazer alguns desvios. Quando entro nesta ruela estreita delimitada por prédios decrépitos, deparo-me com uma cena insólita, a uns 50 metros adiante, vejo uma extensa fila de pessoas, que, uma a uma, vão desaparecendo no chão. Apesar do medo, não resisto e me aproximo com cuidado. Noto que há uma entrada no chão que engole a fila como um engolidor de espadas. Penso na possibilidade de se tratar de uma estação de metrô, mas o lugar, a forma como as pessoas estão agindo, aquela atmosfera de “às escondidas”, tudo vai contra esta hipótese. Observo me esgueirando atrás de uma parede por vários minutos até o último corpo submergir no concreto. Assinalo no aplicativo o lugar exato em que estou, sei que em algum momento irei querer retornar. Retomo a minha procura pela estação de metrô e, em meio as incontáveis questões que pululam em minha mente, pergunto-me se não estamos todos como aquela linha de corpos, afundando nas cidades, estes lugares que construímos para morarmos próximos uns dos outros e vivermos afastados.
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Nos dias que se seguem, a cena do beco não sai da minha cabeça. Cogito perguntar a alguém sobre aquele lugar, mas não consigo pensar em uma única pessoa com quem eu tenha o mínimo de afinidade, ou sinta o mínimo de confiança, para isso. Quem sabe perguntaria a Virgilio, o senhor que me identificou como forasteira e dividiu a mesa comigo por alguns instantes. Certamente, perguntaria. Se tivesse qualquer contato seu, ou mesmo seu endereço, o faria. Por quê? Porque ele também parecia assistir de fora a este mecanismo perverso que funciona em segredo por aqui. Mas e se ele próprio, com aquela conversa, estivesse apenas tentando ganhar a minha confiança para conseguir mais informações a meu respeito? Uma parte de mim tem consciência de que este pensamento soa paranoico; a outra, muito provavelmente, está paranoica.
Suporto minha mente em ebulição por alguns dias até que, saindo do trabalho, decido retornar ao local do episódio. Não sei direito o que busco, desvelar um mistério? Pôr à prova minha sanidade? Enfrentar meus medos? Algo me diz que a cena que presenciei tem relação com o comportamento esquisito das pessoas desta cidade, no fim das contas, deve ser isso que me move.
Usando o aplicativo, não enfrento dificuldades para encontrar o local. A região do beco é bastante suja, há algumas latas de lixo na área e o cheiro de chorume parece já ter se misturado ao asfalto das ruas e ao cimento das paredes. O último estabelecimento comercial pelo qual passei já ficou para trás há algum tempo, os edifícios ao meu redor parecem ser residenciais, todos velhos e não muito altos. Causa-me má impressão o fato de não haver luz acesa em nenhuma janela, tampouco pessoas, cães ou gatos circulando pelas ruas. É como se o espaço houvesse sido evacuado.
Chego exatamente no mesmo ponto em que me abriguei da outra vez e avisto uma porta de metal tapando a boca do chão. Nem sinal da fila de pessoas de outrora. Talvez ainda esteja cedo, decido esperar. Me dou conta de que posso estar exposta a perigos ali, lembro do cachorro, do cavalo... As próprias pessoas que aquele dia desapareciam nas entranhas da cidade, não representariam uma ameaça? Ou se fosse atacada por qualquer outro bandido, estou sozinha neste lugar. Afinal, estou sozinha o tempo todo, em todos os lugares.
Alguns minutos depois, ouço passos. Logo avisto as primeiras silhuetas à entrada do beco, recuo instintivamente e me escondo melhor atrás de uma pilha de caixas de papelão. Imediatamente penso que pode haver baratas habitando aquelas caixas e um calafrio percorre meu corpo. Só arrisco espiar a movimentação de volta quando o som indica que já passaram por meu esconderijo. A coluna de pessoas anda em formação, como uma tropa que seguisse sua marcha por vielas esquecidas. Sem refletir, salto de trás das caixas e acelero o passo para alcançar a fila. Me infiltro assumindo a posição atrás do último elemento. Ninguém parece notar a minha presença, mas algo me diz que cometi um enorme erro, que estão apenas esperando o momento certo para me apanhar. Essa intuição só perde força depois que desço este grande lance de escadas e percorro centenas de metros por corredores impecavelmente limpos e bem iluminados. Todos usam roupas e calçados brancos e têm as cabeças raspadas. Não vejo ninguém reparando em meu estilo diferente, não vejo ninguém sequer olhando para os lados ou para qualquer outra direção que não a nuca do indivíduo logo à frente. Há pontos em que os corredores se cruzam e, às vezes, paramos esperando que uma fila passe. Algumas delas são curtas, outras são absurdamente longas.
Entramos numa sala imensa, com aspecto asséptico idêntico ao dos corredores. Há uma série de cápsulas abertas, de aparência claustrofóbica, cada uma contendo uma poltrona. A fila finalmente se desfaz e cada elemento se dirige ao seu assento. Como era de se esperar, sou a única que sobra. As cápsulas se fecham, um pequeno círculo azul se acende na parte externa das portas e um barulho incômodo passa a ser emitido, semelhante a um aspirador de pó ligado.
Não consigo respostas. Na verdade, estou mais desorientada do que antes. Concluo que minha melhor opção é fazer o caminho inverso e ir embora. Curiosamente, não me surpreendo ao constatar que a porta da sala está trancada. Surpreendo-me, sim, por estar calma diante disso. A primeira coisa que me ocorre é buscar um lugar para me sentar, sinto as pernas cansadas e meus pés doem. Sento-me ao chão com as costas encostadas contra a porta. Estou em paz e penso que me sentiria ainda melhor se pudesse entrar numa daquelas cápsulas e dormir um sono longo e profundo. A maçaneta se mexe sobre minha cabeça e a porta se abre, quase me derrubando para trás.
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“Você não parece estar muito confortável aqui. Prefere ir embora ou conversar?”
Diz uma mulher, também vestida de branco e com a cabeça raspada.
“Como assim conversar?”, pergunto.
“Por que você veio até aqui?”
“Não sei”, respondo e ficamos em silêncio.
“Prefiro conversar”, digo.
“Como queira”.
Sigo-a pelos corredores e minha mente se esvazia na repetição do cenário e no som de nossos passos. O vazio é interrompido somente pelo desejo de que aquele momento não acabe. Como é bom ter alguém a quem seguir, ainda que seja rumo a lugar nenhum. Penso em perguntar seu nome, mas desisto. Temo que qualquer ato novo possa acabar com aquela magia. Para meu desapontamento, a caminhada termina. Chegamos a uma saleta, onde sobre a porta há uma placa que diz “INFORMAÇÕES”. Ela abre a porta e sai de cena. Eu entro e me deparo com um homem que não foge ao padrão do lugar.
“Pois não?”, ele me diz de modo impassível.
Me dou conta de que não formulei nenhuma pergunta durante o caminho.
“O que é isso aqui, afinal? Este lugar, o que é?”
“Este é o centésimo terceiro centro de controle de ações socioeconômicas individuais da região norte”.
“Muito bem, mas o que isso significa?”
“Significa que este é o centésimo terceiro centro de controle de ações socioeconômicas individuais por ordem de fundação da região norte de nosso estado e compõe o quadro regional ao lado de outros cinco mil quatrocentos e quarenta e quatro centros”.
Solto um suspiro.
“Tá, mas o que vocês fazem aqui?”
“Nós controlamos as ações socioeconômicas individuais da superfície, ou seja, toda e qualquer ação que envolve trabalho, em uma determinada área da cidade, é controlada por este centro. Como vivemos em uma cidade de um porte tido como intermediário, há mais quatro centros de controle além do nosso”.
“O que você quer dizer com “controlamos as ações”?”
“Significa que quando qualquer pessoa lá de cima começa a trabalhar, é alguém aqui de baixo que assume o comando”.
“Não compreendo, não faz sentido...”
“Pense no conceito de fantoche, nosso pessoal seria a mão”.
Rio como que ri de uma piada sem graça por compaixão. Espero que ele relaxe o semblante e revele a brincadeira, coisa que não acontece.
“Tá certo, tá certo. Ou vocês são loucos, ou pensam que sou idiota. Será que alguém pode me mostrar a saída?”
Meu humor muda repentinamente ao me sentir subestimada.
“Claro, assim que você deixar a sala, pequenas setas luminosas se acenderão no chão indicando a saída mais próxima, basta segui-las. Antes, gostaria apenas que me respondesse o que você faz em seu trabalho? Ou quem sabe possa me contar quem são seus colegas?”
Chego a descolar os lábios para responder. A resposta parece estar logo ali... A angústia vai crescendo à medida que forço a memória e não encontro nada além de um borrão negro. Olho para o homem como se ingenuamente esperasse por uma pista que não virá. Uma lágrima brota e desliza sem pressa por meu rosto, “Lágrima do absurdo que transborda em mim”.
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