SOBRE O AUTOR
José Sérgio Batista, nascido em Salvador, Bahia, em 1966, filho de um estivador e de uma dona de casa, alfabetizado aos quatro anos, é escritor e professor aposentado de língua portuguesa e inglesa da rede estadual de ensino da Bahia. Graduado em Letras Vernáculas com Inglês pela Universidade Católica do Salvador, em 1990, participou de diversas feiras literárias, incluindo a Flipelô 2022, Bienal Bahia 2022 e 2024, Bienal Rio 2023. Autor de "Na calada da noite" (Viseu, 2022), seu livro de estreia, já está negociando a publicação de seu segundo livro. Contribuiu com poemas para as antologias "Uma poesia para cada noite" (Lura, 2022) e "Coleção Clube de Lu" (Clube de Lu, 2023). É o organizador da coletânea "Vamos rimar assim com passarinhos e bichinhos de jardim" (Usina de Textos, 2024), seu primeiro trabalho voltado para a literatura infantil. Além disso, é um dos apresentadores e mediadores do evento mensal Flicafé, promovido pelo Shopping Itaigara, em Salvador. Redes sociais: @josesergio9b.
A CRÔNICA SEMIFINALISTA
Eu nunca lerei “A pata da gazela”
Eu nunca lerei “A pata da gazela”. Nunca. Jamais. Em tempo algum. Me recuso terminantemente. Nunca o lerei nem que me obriguem. Nada, nada neste mundo ou em qualquer outro me fará ler esse livro. Esse livro me traumatizou sem mesmo tê-lo lido. Me causou um trauma tão profundo que nem a terapia, que já me libertou de várias crenças limitantes, me curou. Esse título embrulha o meu estômago, me dá arrepios, me tira o sono. Na verdade, ele nunca me fez nada, e eu o tornei o vilão da história. Eu não pedi que ele entrasse na minha vida, porém me empurraram goela abaixo, e eu fui obrigado, literalmente, a falar sobre ele para ter que salvar a minha vida. Logo em uma das primeiras aulas de Língua e Literatura Nacional, no 1º ano do 2º grau, atual Ensino Médio, a professora pediu que nos reuníssemos em equipe e escolhêssemos um livro de um autor brasileiro que já tínhamos lido para comentar. Não haveria necessidade de fazer o resumo do livro, contudo a equipe devia fazer a apresentação de acordo com o que cada um sabia sobre aquela história e autor. Assim foi feito. Como era início de ano, e todos estavam em um colégio novo, era natural que as equipes fossem se formando de acordo com a proximidade que um estava sentado do outro. Rapidamente, viramos nossas carteiras, como todos na sala, fizemos um círculo fechado, e nossa equipe estava formada. Eu mal falava com um ou dois. Como as turmas eram organizadas por ordem alfabética, todos na minha sala tinham o nome começando com a letra J: mil Josés e uma dezena de Joses. Apenas uma menina ficou na minha equipe: Joseisso Uma. Os outros seis, incluindo este que vos fala, eram Josés... José Um, José Dois, José Três, José Quatro e José Cinco. Na sala, todos eram tratados pelo segundo nome, exceto as meninas, que eram Joseisso, Joseaquilo... José Um logo se arvorou para ser o líder da equipe e o porta-voz da apresentação. Impôs que o livro a ser apresentado seria A pata da gazela, de José de Alencar, e começou a traçar as diretrizes da apresentação. Todos já tinham lido o tal livro menos eu. Eu já tinha ouvido falar em José de Alencar. Uma novela já tinha sido produzida, baseada em uma obra dele: Senhora. Sabia também que ele tinha escrito Iracema, a virgem dos lábios de mel, que eu viria a ler anos depois, na faculdade, com o título Iracema. Acredito que a virgem dos lábios de mel foi acrescentado à produção cinematográfica para levar mais espectadores aos cinemas. Como José Um não me deixava falar em momento algum, sempre me cortava quando eu tentava articular uma opinião, deixei-o longamente orquestrar a apresentação e fui matutando como eu me livraria daquele imbróglio. Ele distribuiu as falas de cada membro da equipe e, quando me entregou as minhas, eu recusei e protestei: — Eu não posso ser sua voz. Você não deixou ninguém falar em nenhum momento. Eu queria dizer que eu nunca tinha lido esse livro, e você nem me deixou abrir a boca... — Como você nunca leu A pata da gazela?! Todos já leram A pata da gazela. É leitura obrigatória pra quem cursa a 8ª série. É inadmissível... A professora nos cortou, perguntando se estava tudo bem com a equipe, pois José Um estava falando muito alto e pediu agilidade que a nossa equipe seria a primeira a se apresentar. — Tá vendo só? Nossa equipe já vai ser a primeira, e você nunca leu A Pata da Gazela. Como é que você passou no teste de seleção pra esta escola? — Da mesma forma que você, eu suponho. Eu fiz todas as provas, exames e trouxe todos os documentos solicitados, e fui aprovado em todos eles. — Mas... — Nem mais, nem menos. Essa equipe está conversando muito e vai apresentar o trabalho agora — comentou a professora em um tom áspero. — Só espero não tirar zero por sua causa, palhaço! Não sei o que você vai falar. Nos levantamos e nos posicionamos na frente do quadro de giz e à frente dos demais colegas, que permaneciam sentados. Estrategicamente, a professora foi para o fundo da sala e sentou numa cadeira qualquer. Os outros cinco membros se entreolharam como quem pergunta: “E agora?”. Permaneci calado, encostado na parede, perto da janela. Antevendo o que a professora ia pedir, José Um deu dois passos à frente e abriu a apresentação. — Boa tarde! Eu sou José Um e, como líder da equipe, vou conduzir esta apresentação com auxílio dos meus colegas. Nosso livro escolhido é A pata da gazela, de José de Alencar. A professora, no fundo da sala, balançou a cabeça afirmativamente. — Como é de praxe na oitava série, todos leem A pata da gazela, de José de Alencar. — José Um foi incisivo, com um ar esnobe. — Então acredito que todos vocês já o tenham lido... Nesse momento, aconteceu algo que José Um não esperava. José P ergueu a mão, pediu licença e afirmou: — Eu não li esse livro na oitava série, nem qualquer outro. A professora de português saiu de licença pra parir no início do ano e não teve professor substituto. No final do ano, a escola passou um trabalho e todo mundo passou com cinco. Sem se deixar abalar, José Um sugeriu: — Deixemos os comentários e as perguntas pro momento final. — Eu também não li — disse José W. — Nem eu — afirmou uma das Joseissos. A professora, sabiamente, não intervinha. — Mas é praxe... — tentou insistir José Um. Aproveitei o momento em que José Um deixou a fala no ar, levantei-me, aproximei-me dele, olhei fixamente dentro de seus olhos e comentei: — Pode ser praxe na escola onde você estudou, mas nas escolas onde eu e muitos dos nossos colegas estudamos nunca foi. Tenho certeza de que a maioria dos nossos colegas, assim como eu, já leram vários outros livros de outros autores sem isso ser praxe nas suas escolas. José Um parecia não acreditar no que ouvia. Tentava abrir a boca, e eu o calava antes. A professora, sentada no fundo da sala como mera observadora, parecia gostar daquela cena. Eu continuei: — Aproveitando que alguns colegas e eu não lemos esse livro, vamos inverter a ordem da nossa apresentação. Primeiramente, vou falar por que nunca li esse livro. Em seguida, você e os nossos colegas de equipe vão falar por que o leram. A matemática diz que a ordem dos fatores não altera o produto. E assim será. Dessa vez, a professora balançou a cabeça afirmativamente para mim e sorriu, coisa rara na Professora Constantina. — Como eu estava dizendo, não li esse livro na oitava série. Li quatro outros. Minha professora de português e todas as professoras de português da escola onde eu estudava, diga-se de passagem, era um colégio público da rede estadual, passavam um livro paradidático para cada unidade. Assim, no ano passado, eu li O quinze, de Rachel de Queiroz; Banguê, de José Lins do Rego; São Bernardo e Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Nos anos anteriores, li quase toda a Coleção Vaga-Lume. Até hoje, tenho saudades da Ilha perdida, de Maria José Dupré; O caso da borboleta Atíria, de Lúcia Machado de Almeida e Menino de asas, de Homero Homem. Eu poderia citar aqui outros títulos lidos porque minha leitura nunca se limitou ao que as professoras de português passavam. Meu pai foi o grande incentivador das minhas leituras. Antes de eu nascer, ele já tinha me presenteado com a Conhecer e a coleção completa de Júlio Verne. Aos treze anos, descobri os best sellers internacionais e comecei a ler Harold Robbins, Sidney Sheldon, Irwing Wallace e Agatha Christie. Havia um silêncio celestial na sala. José Um já havia há muito tempo se sentado e fechado sua taramela. Eu flutuava pela sala... Constantina, no fundo da sala, parecia extasiada com cada palavra que eu dizia. — Sim, eu conheço José de Alencar de nome. Ele escreveu Iracema, aquela mesma que era a virgem dos lábios de mel — disse num tom sensual, o que fez a classe dar gargalhadas. — E — num tom firme e voz alta, o que fez a classe voltar a ficar em silêncio — Senhora, a visionária para alguns. Senhora virou até uma telenovela de sucesso. Mas... mas... — titubeei intencionalmente — A pata da gazela nunca li, nem sabia que existia. Talvez seja falta de conhecimento meu, talvez eu seja um ignorante, talvez eu não seja uma pessoa tão culta como alguns se julgam — disse fuzilando os olhos de José Um, que simplesmente os baixou juntamente com a cabeça. — Mas a verdade é essa: eu nunca li esse livro, nem sei do que se trata. Certamente, é uma obra importante da literatura brasileira. Além do mais, foi defendida a unhas e dentes pelo nosso estimado colega José Um e é praxe na escola onde ele estudou. Fica o convite para que a gente leia e descubra por que o livro tem esse título. Nem eu sei o que quer dizer gazela. Talvez seja um animal porque tem patas. Talvez seja um título com uma metáfora. Quem sabe nossa Professora Constantina pode torná-lo leitura obrigatória para este semestre, e assim todos nós teremos de lê-lo para tirar a nota. Desta forma, eu encerro minha fala e sou solidário à maioria da sala que nunca leu esse livro porque não era praxe em nossas escolas. Fui ovacionado. Curvei-me levemente para a frente com as palmas das mãos justapostas, como fazem muitos orientais, em sinal de gratidão. A professora Constantina continuou sem interferir. Fiz uma pequena pausa. Respirei fundo. Olhei para a professora, que parecia satisfeita. Olhei também para José Um, que continuava cabisbaixo. Prossegui: — Para dizer por que já leu A pata da gazela, de José de Alencar, eu passo a bola ao meu nobre e culto colega José Um. José Um, agora é com você, Bahia. Ele se levantou da cadeira. Abatido, procurou forças para se reerguer. Quando passamos um pelo outro, satisfeito, não pude deixar de sussurrar em seus ouvidos: — Palhaço! — Sem a mesma altivez e superioridade do início da apresentação, ele foi, mecanicamente, explicando o livro e falando sobre José de Alencar, seguido pelos outros membros da equipe. Do fundo da sala, a professora, teceu seus comentários e disse que a nota da equipe seria dez, única e exclusivamente pela minha apresentação. Segundo ela, os demais membros deixaram a desejar e não foram convincentes em seus argumentos. Como era um trabalho em equipe, a nota não poderia ser diferente para cada um. Há muito tempo, não via uma apresentação tão improvisada e, ao mesmo tempo, tão espontânea, natural. Em respeito a mim, ela deu nota dez para todos. Até hoje, eu nunca li A pata da gazela, de José de Alencar.
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