
SOBRE O AUTOR
Lucas Barreto é de Recife desde 1997. Gay, sagitariano, ciclista, otimista, apaixonado e infantil, começou a escrever ainda na adolescência e nunca parou (nem nunca quis parar). É autor dos livros "uma noite que teima em permanecer" (2021, disponível apenas em formato físico) e "o dia não promete nada" (2023, disponível em formato digital na Amazon), além de publicar textos na newsletter "Devaneios Urbanos" pelo substack. A newsletter anda desatualizada pois Lucas também é estudante de Psicologia na UFPE, ator em formação na Escola João Pernambuco e na Cênicas Cia. & Repertório e iniciante enquanto DJ sob o nome de Andromeda.
O CONTO SEMIFINALISTA
Noruega
Choveu granizo em Mirandiba. Não sei onde fica Mirandiba, nunca soube que existia Mirandiba, mas choveu granizo em Mirandiba. Assistia ao jornal da noite no conforto do seu apartamento o doutor Luciano Figueiredo Barbosa Xavier quando ficou sabendo da chuva de granizo em Mirandiba. Ele na capital, Mirandiba lá no sertão. Uma chuva de granizo trouxe Mirandiba para o seu apartamento em Boa Viagem, próximo à praia. Sabe ali o terceiro jardim? Um pouquinho mais pra lá, já chegando no Carrefour, mas antes ainda. Pois pronto: choveu granizo em Mirandiba ali em Boa Viagem na televisão do doutor Luciano.
E como é que pode, né rapaz?, chover granizo no sertão. Em Mirandiba, ainda por cima! Que até ontem nem existia e de repente invade a sala do doutor Luciano como se tivesse assim o seu direito de invadir casas... apartamentos... lares! Mirandiba invadiu o lar do doutor Luciano como o granizo invadiu os lares dos mirandibenses. Mirandibenses? Qual é o gentílico de quem é de Mirandiba? E se quem nasce em Mirandiba for granizo? Doutor Luciano é recifense, seu Alberto na televisão filmando o teto quebrado da sua casa é granizo. O granizo que choveu em Mirandiba quebrou o teto do seu Alberto. E o doutor Luciano assiste, impávido, perplexo, inabalável, admirado. Choveu granizo em Mirandiba!!! No sertão onde neurônios são queimados e onde a seca nunca é apenas um substantivo choveu granizo. E com a chuva de granizo na televisão, em Mirandiba e no teto do seu Alberto, o doutor Luciano percebe a faísca de um sentimento.
Os carros param imediatamente na avenida e a imagem na televisão, de repente, fica estática e a cidade toda (Recife, mas também Mirandiba) se paralisa no microssegundo do sentimento faiscando no peito do doutor Luciano e o mundo inteiro se suspende e nada mais há ou se faz. Surgiu um sentimento, não há dúvida. O doutor Luciano encara a seca do próprio peito ser alvo de chuva de granizo, ele até olha para o próprio peito nu enquanto todo o planeta segue inerte e vê, atravessando as suas veias, o rastro de um sentimento. É uma dessas coisas que o coração fica prestes a explodir por muito, muito tempo. Destemido que sempre foi o doutor Luciano, ele se joga de cabeça no mais profundo do sentimento, o que é isso?, sentir. Não se fala disso nos jornais, não há tempo para os sentimentos. Mas agora o há. Há todo o tempo do mundo. Temos tempo, diz o mundo estagnado, pausado para honrar um sentimento. Sentimento se honra na pausa de todo momento.
Doutor Luciano, eu tô sentindo uma dor aqui na lateral do meu ombro direito. Doutor Luciano, eu tô sentindo uma paralisação do meu polegar, desse aqui, mas não tá legal assim, tá estranho. Doutor Luciano, eu tô sentindo um negócio meio troncho, meio sei lá o quê, tipo uma coisa assim mais pra lá do que pra cá, nem arde e nem dói, mas incomoda pra cacete, e agora?? Doutor Luciano, eu tô sentindo o meu corpo todo, eu sinto o meu corpo, eu sou o meu corpo, eu preciso do seu aval, doutor Luciano, pra dizer que eu posso sentir o meu corpo porque da próxima vez que chover granizo lá na minha cidade de Mirandiba, eu preciso que meu corpo aguente o tranco porque vai chover granizo no meu corpo inteiro também. Acalme-se, meu filho, eu sou o doutor Luciano Figueiredo Barbosa Xavier, eu garanto com este aval, esta assinatura e este carimbo: você está sentindo. E tudo bem estar sentindo.
E doutor Luciano sente que tudo bem sentir, seja lá o que ele sinta. Pois nunca choveu granizo nesse sertão, não que o doutor Luciano possa se recordar. Mas pra tudo tem uma primeira vez, então agora chove granizo, não mais em Mirandiba, mas em Boa Viagem, depois do terceiro jardim, antes do Carrefour, no sofá do doutor Luciano, sofá bonito, doutor Luciano lúcido, seu peito explodindo em granizo. Mas quem dá o aval ao doutor Luciano quando é ele quem tem o sentimento? Não, não, não... Não! Precisamos desse aval, precisamos nos certificar, vamos garantir, vamos atrás de saber, tem que questionar, tem que validar, três doses ao dia, uma a cada 8 horas, assinado e carimbado. A receita é granizo por tempo indeterminado e essa chuva nunca vai passar; o mundo suspenso.
Doutor Luciano, como é que pode? Inocente que foi o doutor Luciano de preparar um misto quente pra si mesmo achando que conseguiria paz assistindo ao jornal e jantando na sua própria solidão, não, não, não. Choveu granizo em Mirandiba, doutor Luciano, e o granizo quebrou o teto das casas e invadiu as salas e destruiu os lares, o granizo é de uma inconveniência e de um desconforto sem igual, doutor Luciano, granizo não é misto quente, nunca vai ser. E toda noite era misto quente, doutor Luciano, uma hora o granizo ia quebrar o teto do seu apartamento e destruir o seu conforto, chegou a hora, por isso, pare.
Pare tudo, doutor Luciano, pare imediatamente! Proteja-se pois é preciso ser feliz, você sabe disso muito bem, gente com dor não é feliz, gente com dor se zanga, gente com dor xinga o médico e a secretária do médico e a mãe da secretária do médico e os pacientes do médico e as mães dos pacientes do médico, gente com dor não, doutor Luciano, faça-me o favor! O senhor não já foi para a Noruega? Pois então, proteja-se na Noruega! Na Noruega as pessoas são as mais felizes do planeta. Quem nasce em Mirandiba é granizo, quem nasce na Noruega é feliz. O que é interessante, pois toda pessoa feliz que o doutor Luciano já conhecera na vida não era da Noruega. E aí, como é que fica? Prometeram felicidade pro planeta inteiro, mas só lá na Noruega, de onde foi que arrumaram essas outras felicidades espalhadas por aí?
E a Noruega tá longe que só a desgraça, sei nem onde é que fica, mas é longe, e Mirandiba é aqui pertinho, aqui do lado, dá pra chegar de carro! Não dá pra chegar de carro na Noruega, muito menos a essa hora, que o trânsito deve tá um inferno que só! Mas aproveita, doutor Luciano, aproveita que o mundo tá assim ó, paradinho todo, estagnado, inerte, aproveita agora e foge pra Noruega. Vai ver se esse negócio de ser feliz funciona por lá, vê se tem misto quente, porque com certeza tem granizo.
Como assim? Onde já se viu?! Na Noruega as pessoas são felizes mesmo com granizo? Não, não dá, não pode, não tá certo, quem que disse isso? Quem que pesquisou? Tem que ir atrás, tem que ver, tem que investigar esse negócio direitinho, doutor Luciano, é na Noruega mesmo? Foi o que falaram, pelo menos... E seu Alberto, não é feliz? Bem, até que era né, mas o granizo quebrou seu teto, invadiu sua casa, molhou o seu sofá e despertou um sentimento no doutor Luciano, então quem que é feliz? Não, não, não... Ninguém. Nem aqui, nem em Mirandiba, nem na Noruega, jamais, nunca! Ninguém é feliz, é o que diz esse sentimento, o misto quente perde o gosto na boca e a nuvem cinzenta que paira na varanda do doutor Luciano diz também que ninguém é feliz, é esse o sentimento.
O mundo inteiro parado, suspenso, o doutor Luciano sentindo. O coração para sempre prestes a explodir, como é que pode?
E quando o mundo inventa de prosseguir no seu fluxo e os carros de repente voltam a acelerar e a frear e a buzinar e a nuvem agora já vai sumindo da varanda e o misto quente começa a esfriar, lá vem ela, a senhora Magnólia de Azevedo Barbosa Xavier saindo do seu quarto em direção à sala. Luciano, meu bem? Luciano? Luciano! LUCIANO!!! E dá uns tapas na cara do seu marido que encara a televisão mudo, estagnado, com olhos esbugalhados e um pedaço quase nada mastigado de misto quente na sua boca, sem camisa, no sofá, morto.
Luciano! Lara, chama um médico!!! Socorro, meu marido, alguém, socorro! Eu disse, doutor Luciano!, eu mandei o senhor fugir de Mirandiba, sair dali o mais rápido possível, correr pra Noruega, lá as pessoas são felizes e você me inventa uma dessas. Que desconforto... Que inconveniência... Ninguém deixou, ninguém deu esse aval, assinou ou sequer carimbou! Você morreu de granizo, doutor Luciano, e seu Alberto amanhã vai no armazém comprar telhas novas, vai subir pela escada lá no telhado e vai consertar tudo. Enquanto isso, a sua esposa e o seu filho mais velho vão enxugando as coisas na casa e varrendo o que se quebrou e o sol vai raiar em Mirandiba, doutor Luciano, e o sol já está prestes a raiar na Noruega. Pois quando chove granizo na Noruega, isso nunca vira notícia, lá só se fala em ser feliz, é o povo mais feliz do planeta. Lá todo mundo já sabe que vai chover granizo em algum momento, todo mundo já sabe do granizo, por isso todo mundo é feliz. É proibido ser infeliz na Noruega, lá tem granizo, mas nunca é notícia. Você não vai ser notícia, doutor Luciano. Desses granizos a gente nunca fica sabendo. A gente só vai lá, conserta o nosso telhado, ri do desespero quando ele vira lembrança e prepara um misto quente. Problema seu que inventou de sentir.
ps. Não é a Noruega o país de pessoas mais felizes do mundo e sim a Finlândia. Então talvez o doutor Luciano tenha conseguido fugir para a Noruega, mas eles são apenas o quinto colocado no ranking da felicidade. E um quinto de felicidade nunca salvou ninguém de nada, tem que ser felicidade de primeira. E isso só na Finlândia e em Mirandiba, mas ninguém fala sobre isso. Felicidade também não vira notícia, só granizo.
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