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PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: MARÍLIA BONNA




SOBRE A AUTORA


Marília Bonna está em algum lugar entre o Rio de Janeiro - onde nasceu - e o Mato Grosso,

onde foi criada. Habituada a fronteiras, gosta de estar entre a imaginação e a realidade. Por

isso, dedica-se aos livros: tendo se tornado especialista em Literatura, Arte e Pensamento

Contemporâneo pela PUC-Rio e mestre em Estudos Literários pela UFMT, além de exercer - desde 2015 - o ofício de livreira no Sebo Rua Antiga, fundado por ela e seu companheiro, o

aquarelista Thiago Iusso Sinohara.



A CRÔNICA SEMIFINALISTA


Procura da Poesia


Quando eu morava no Rio, gostava muito do queijo minas feito no Sítio Solidão, que fica ali no Vale do Café e cujo nome aparece estampado na embalagem. Tinha em quase todos os mercados da cidade e, no fim de um dia cansativo, eu enfrentava a fila – a longa fila dos frios – e pedia, achando muito bonito poder pedir isso, trezentos gramas de Solidão. A primeira vez que me descobri ali, reclamando solidão no balcão dos frios, fiquei surpresa com a presença inesperada da poesia – em lugar tão inoportuno, tão cotidiano, entre pessoas exaustas, luzes brancas demais e promoções de maçã argentina e limão taiti –, fiquei surpresa em poder partir, muito naturalmente e num dia tão comum, com um pedaço de Solidão nas mãos, a ser consumido nos próximos dez dias, em pequenas fatias e provavelmente no café da manhã. Acho que gostei mais do queijo por causa disso, por causa da poesia.

O título desta crônica foi tirado de um poema do Drummond, um poema em que ele diz coisas muito bonitas para as pessoas que, como eu, procuram pela poesia: “penetra surdamente no reino das palavras” – ele aconselha – porque “lá estão os poemas que esperam ser escritos”. Estão lá, escreve Drummond, sozinhos, mudos e “em estado de dicionário”. Esta ideia de que a poesia espera por nós, silenciosa e oculta entre as palavras mais corriqueiras, entre os avisos de promoção de maçãs argentinas, por exemplo –, é sobre ela que quero falar aqui. Os cronistas antigos, aqueles que eram pagos para preencher os vazios mal resolvidos pela diagramação dos jornais, precisavam escrever crônicas todos os dias. Todos os dias suas palavras precisavam brotar como flores obstinadas no solo improvável das notícias pequenas e dos anúncios comerciais. Desesperados por assunto, esses cronistas desenvolveram a incrível capacidade de encontrar poesia nos lugares mais despropositados: nos classificados, nas lojas de pássaros, nas conversas de telefone, nas gomas de mascar, nos entregadores do centro da cidade, nos obituários. Com medo de enxergar apenas a realidade, essa ordinária e triste e rasa realidade, eles se transformaram numa espécie de arqueólogos ou escafandristas ou astrônomos do cotidiano – qualquer dessas profissões em que é preciso ter o dom da profundidade. 

Desenvolver o talento da profundidade, a disposição para olhar fundo, é o jeito mais suportável e mais bonito de existir, de tolerar a longa espera na fila dos frios. Quando descobri isso, encontrar a poesia dissimulada de todas as coisas virou meu exercício preferido. Acabei, por exemplo, uma leitora obstinada de notícias (Manuel Bandeira tem um poema tirado de uma notícia de jornal) só para poder, de vez em quando, encontrar manchetes como esta: “Invasão de pombos nos prédios dos Correios incomoda servidores, em RO”, e ter a pequena felicidade de tirar de dentro dela uma beleza: imaginar esse bando de pombos desatinados, certamente herdeiros de uma linhagem quase extinta de pombos-correios e movidos por uma incontrolável nostalgia do ofício, invadindo esses prédios de Rondônia em simples e justificáveis protestos de saudade. Os pombos, afinal, só foram domesticados um dia para o ofício de mensageiros porque são aves nostálgicas, aves que sempre voltam. Fiquei querendo explicar a beleza disso para os funcionários incomodados, os funcionários que não conheço. Mas certas coisas só aparecem para os que estão muito dispostos a vê-las.

Há também outra manchete da qual nunca esqueci: principalmente porque, além da poesia mal dissimulada, desconfio que ela também pretendesse ocultar um poeta. Que há isso: poetas aos montes escondidos por aí, em salas de aula, em verbetes surpreendentes de dicionários, nos livros de História, nos tribunais, nas redações, nos supermercados, na produção de queijos, em lugares infinitos, deixando pistas inequívocas de sua tímida existência. Descobri-los é como descobrir um segredo – bom e ruim: há uma tristeza inexplicável em invadir tanta intimidade, em conhecer o sonho extraviado do outro. Mas, voltando à manchete que nunca esqueci, ela dizia: “Corpo de agricultor é encontrado em açude de Solidão, no Sertão”. Eu nem sei por onde começar a falar sobre a beleza dessa frase, apesar do informe duro e triste que ela nos traz. É uma frase elegante, com ritmo, com aliteração e com uma capacidade metafórica considerável. Há a imagem desse pobre afogado em açude de solidão. A solidão desse agricultor é imensa, assustadora, muito diferente da que eu comprava no mercado do Rio (solidão consentida, solidão procurada): não trezentos gramas, mas três, trinta ou trezentos mil litros (a depender do tamanho desse reservatório específico) de solidão.

É claro que pesquisei sobre este lugar a que deram o fadado nome Solidão. Fica no sertão pernambucano e foi batizado por um padre que, no começo do século XX, chegou a, então, uma das únicas casas do povoado e a primeira coisa que disse ao proprietário não foi “olá”, mas “que solidão!”. O mais bonito dessa história é que o morador, que se chamava Jesuíno, não sabia o significado desta palavra (já imaginaram a felicidade de uma pessoa que não sabe o que é solidão?) e perguntou ao padre, que explicou: “é estar em lugar ermo, isolado”. E assim o povoado e depois município e cidade foram batizados. Mais de um século mais tarde, um homem se afoga em Solidão. Há de se ressaltar que não se trata de um homem qualquer, mas de um agricultor, um agricultor do sertão – um desses homens infatigáveis que passam a vida tentando cultivar a terra seca, o deserto de Solidão. E que quase nunca conseguem.

Enquanto isso, enquanto cronistas e agricultores do sertão tentam insistentemente plantar em solo ríspido, há máquinas de flores nos aeroportos – outra das coisas que, nesse cuidadoso exercício de olhar fundo, acabou me chamando atenção. Profundamente dividida entre a beleza e a decepção que é saber da existência de uma máquina que dá flores como se desse refrigerantes, fiquei hipnotizada a primeira vez em que a vi: estranha e solitária entre os passantes distraídos. Desde então, reparo inevitavelmente nas pessoas que se aproximam, querendo saber qual delas vai ser delicada, em seu desejo de enfeitar a própria espera, ou rude o suficiente para colher uma rosa dessa maneira: apertando um botão e deixando-a cair desprotegida e bruscamente, como se fosse – uma vez mais – arrancada. 

Em 2018, passeando pelo aeroporto de Cuiabá com um casal de amigos, vi uma cena desoladora: um homem balançava violentamente uma dessas máquinas e dava tapas na lataria, indignado porque apertou o botão e a flor não caiu. Ficamos os três acompanhando a desilusão daquele homem, até que ele desistiu da luta contra a máquina e foi embora, sem olhar pra trás e sem a flor. Pensando agora nesse episódio, lembro do poema do Drummond, aquele que dá nome a este texto, aquele que diz para os que procuram pela poesia: “não forces o poema a desprender-se do limbo”. Imagino-o (o poema) paralisado, tão cravado no nada quanto as palavras e as plantações não nascidas dos cronistas e dos agricultores do sertão; quanto a poesia diariamente perdida na fila de espera dos frios e nas manchetes dos jornais. Imagino-o tão secreto, tão silencioso, que nem mesmo os astrônomos (ou escafandristas ou arqueólogos) do cotidiano, com seus instrumentos próprios, conseguem enxergar; tão relutante em sua superfície negra quanto a rosa imperturbável da máquina de flores. E aí me sinto, de repente, como o homem do aeroporto, esperando em vão e ao fim desta crônica por uma flor que se recusa a aparecer, por uma flor que não vem; sendo obrigada a partir, desconsolada e vencida pela máquina, com as mãos vazias. E sob o olhar de pena de vocês.

Procurar a poesia tem dessas.


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