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PRATA DA CASA | CONHEÇA OS FINALISTAS: REGINALDO FERREIRA DE CERQUEIRA



SOBRE O AUTOR


Reginaldo Ferreira de Cerqueira é enfermeiro de formação e terapeuta. Iniciou sua carreira como escritor a partir do pedido de um colega, músico nas rodas de viola e nos pagodes do subúrbio do Rio de Janeiro. O pedido foi escrever alguns poemas para musicar o que deu origem a quatorze poesias. 



Página do autor: www.reginaldocerqueira.com.br 

Youtube- Reginaldo Cerqueira

Instagran- @reginaldofcerqueira



O CONTO FINALISTA


Coração Negro 

Acordei com dores no pescoço e na coluna, minha roupa estava encharcada de suor.  Permaneci de olhos fechados, tomando coragem. Aos poucos, minha consciência se  alinhava ao meu estado de vigília. Olhei em volta, ainda estava no mesmo cubículo  miserável e fedorento. 

Levantei, usando toda a minha força de vontade. Eram 9h30, estava atrasado. Tomei um  copo de leite meio estragado que estava na geladeira. Escovei os dentes e saí com a roupa,  já com cheiro de azeda.  

Eu completara, na semana anterior, 42 anos de vida cheia de sofrimento, doença, falta de  sorte, abandono e miséria. Morava sozinho na favela do Vidigal e trabalhava na cozinha  de um restaurante no centro da cidade. Não era bem um restaurante, começou como uma  pastelaria, e que, aos poucos, foi servindo PFs. O dono era um chinês que chegou ao  Brasil com dezessete anos e, depois de muita luta, conseguiu ter um estabelecimento  próprio. O senhor Jin Zu me contratou apenas para pagar um débito com um amigo, o  velho idiota me odiava, me tratava como a escória do mundo. Talvez ele tivesse razão.  Eu o odiava também e, em meus secretos pensamentos, sonhava em enterrar minha faca  em sua barriga gorda. Tínhamos um convívio marcado pela tensão e desconfiança mútuas.  Se tivesse que apontar alguma coisa positiva que resultara desse relacionamento, eu  citaria o aprendizado do mandarim. Aquele miserável chinês mal falava o português,  mesmo com tantos anos no país e, por força do trabalho, acabei por aprender a me  comunicar em sua língua materna.  

O velho só saía do restaurante para ir ao banco, depositar o dinheiro do dia. Andava pelo  centro da cidade, com roupa tradicional da sua terra, e era bem conhecido pelos  comerciantes da área. Com o tempo, fui conhecendo sua rotina e percebendo coisas que  precisavam de uma explicação. Pelo menos uma vez por semana, ele recebia a visita de  conterrâneos, permaneciam por pouco tempo em uma espécie de reunião, falando baixo,  em uma atitude de respeito e reverência para com o velho. Após alguns minutos, eles,  discretamente, entregavam um pacote ao velho, que o recebia com um largo sorriso.  

No início, não notei nada de especial na pastelaria, que era igual à maioria dos  estabelecimentos chineses espalhados pela cidade. Todavia, era outra cultura, e levei  algum tempo para entender certos detalhes. Em um canto da loja, o senhor Jin Zu  mantinha um altar, com a imagem do deus Taoista, Zhang Guo Lao, um dos oito imortais. 

A rotina de trabalho seguia um roteiro rígido, eu era responsável pelo trato da carne,  limpeza da cozinha, dos banheiros e pratos, começava o trabalho às oito horas e terminava  por volta de 22h. O salário dava para pagar o cubículo fedido onde eu habitava, uma ou  duas idas à zona e uma carreira de cocaína por semana. 

Um dia, no fim do expediente, sentado na cozinha, descansando, pensei ter visto o senhor  Jin Zu se esgueirando por trás da imagem do Imortal. Achei que eu tivesse caído no sono  e estava tendo um pesadelo, mas, alguns minutos depois, o velho se esgueirou para fora,  através de uma pequena porta que não tinha notado que existia. Ele apresentava um  estranho sorriso nos lábios. Na verdade, foi esse fato que me estimulou a aprender a língua  dele e estudar a cultura chinesa. Fiquei meio que obcecado em descobrir o que tinha atrás  da imagem, que fazia o velho idiota tão feliz.  

Mais uma noite infernal. Verão no Rio de Janeiro, a temperatura era de quase 35°C, os  mosquitos não davam trégua, o som de tiros era onipresente na comunidade. Enrolei um  baseado, na esperança de não sentir a absurda condição em que me encontrava. A erva  provocava um efeito de dormência muscular, ao mesmo tempo em que lembranças  emergiam com espantosa clareza. As imagens pipocavam em minha cabeça, todas tinham  uma carga emocional dolorosa. A face de minha mulher e de meu filho bailavam na minha  frente enquanto diálogos, que não sei se verdadeiros, me empurravam à beira da loucura.  Ela tinha ido embora com o meu filho há uns dez anos , não tinha conseguido suportar  por mais tempo a minha presença e as surras que eu dava no garoto, disse ela, filha da  puta. O que ela não contava era o chifre que me botou com o vizinho e, além disso, nunca  valorizou meu esforço na educação do fedelho. Mas eu ia à forra, estava perto de descobrir  para onde ela fugiu, e quando chegasse a hora, ela e aquele moleque retardado iriam se  arrepender de terem me feito de otário.  

De repente, a imagem do velho chinês apareceu na minha frente, com aquele sorriso sem  graça. Pela primeira vez, a ideia de vasculhar o quarto secreto dentro da pastelaria tomou  forma, tinha que haver algo valioso lá. Por que os outros chinas viviam bajulando o velho  idiota? Um plano começou a se cristalizar em minha mente, eu sabia a rotina e horários  do senhor Jin, tinha que aproveitar os breves momentos em que ele saía para explorar o  que havia por trás do Imortal. 

O dia se iniciou como qualquer outro, não tinha paciência com meus vizinhos e não perdia  a oportunidade de mandá-los à merda, como resposta até por uma saudação de bom dia.  Minha filosofia era de não dar muita intimidade para ninguém. Entrei pela porta de trás  do ônibus, para economizar alguns trocados. Isso foi o suficiente para a discussão com o  motorista, que veio todo empolgado em minha direção, mas parou de estalo, quando me  viu discretamente apontando uma faca em sua direção. Com certeza, percebeu que eu não  estava para brincadeira. 

Entrei na pastelaria, observando o altar do Imortal. Era uma figura imponente, vestido  com uma armadura e portando uma lança com lâmina larga e dentada, duas espadas  estavam cruzadas e fixas em sua cintura. No altar, havia dois pequenos pratos, um  continha arroz e outro sal e, ao lado, uma garrafa de Hangjiu, bebida tradicional chinesa.  

Abaixei-me perto do altar, simulando amarrar o cadarço do tênis. Notei o senhor Jin me  olhando, com olhar de reprovação. Fiquei pouco tempo, só o suficiente para notar um  pequeno facho de luz ao lado do altar, que vinha, provavelmente, de uma porta secreta. 

O dia passou devagar, se arrastando. Não sei se ainda sob o efeito da erva, sentia o senhor  Jin tomando conta de meus passos na cozinha, o velho miserável ia me pagar. 

Estava ansioso, grossas gotas de suor escorriam pela minha testa, até que, finalmente, às  16h15, o senhor Jin Zu ganhou as ruas, como em todos os dias, para fazer o depósito do  movimento do caixa. Aproveitei para me aproximar do “deus” e, muito cautelosamente,  tentei abrir o fecho semi-camuflado na parede. Com um pequeno ruído, uma fresta se  abriu. Introduzi minha mão, segurando o celular, e tirei várias fotografias do interior do  cômodo. Nesse momento, vários clientes entraram na pastelaria, puxei a mão rápido, e  uma farpa de madeira penetrou fundo em meu punho direito. A dor que isso me causou  era lancinante, gotas de sangue mancharam, quase que de forma imperceptível, o pequeno  fecho da porta secreta. Meu punho doía terrivelmente. Não me atrevi a olhar as fotos  naquele momento e segurei a curiosidade até sair da loja. Depois do expediente, fui direto  para um puteiro que funciona na rua do Rezende e, naquele ambiente esfumaçado e  cheirando a perfume barato, abri o arquivo de fotos do aparelho de celular. 

As fotos estavam escuras e indefinidas, o lugar parecia pequeno, mas suficiente para  abrigar um homem de pé. Em uma delas, algo brilhante se destacava no fundo negro,  parecia uma pilha de algum metal brilhante. Olhando a foto mais atentamente, percebi  olhos amarelos, que fitavam diretamente a câmera do celular, poderia ser uma estátua ou  algo parecido. Decidi que aquela foto merecia um tratamento diferenciado. Saí do puteiro  por volta de 22h. O punho latejava, minha mão estava inchada e quase paralisada. Segui  em direção ao ponto de ônibus para ir para casa. Próximo ao coletivo, um grupo de  motoristas conversava. Esperei um deles ligar o motor para entrar pela porta traseira,  como era meu costume, quando ouvi uma voz atrás de mim, dizendo: 

― Agora vamos ver quem é o macho. 

Me virei lentamente, era o mesmo motorista que eu tinha ameaçado com a faca no horário  da manhã. Subitamente, senti uma forte pressão empurrar meu olho esquerdo para dentro  do crânio, ao mesmo tempo em que crescia uma dor que se espalhava pela minha  mandíbula. Sem entender o que estava acontecendo, outra pressão fez minha coluna se  dobrar para frente, e um raio de compreensão me iluminou. Eu estava tomando uma surra  do motorista, que, indiferente ao meu punho ferido, que me impedia de me defender,  quase me matou de porrada. Acordei na emergência do Hospital Souza Aguiar, sentindo  dores por todo o corpo. Estava com duas costelas quebradas, senti a falta de um dente da  frente, minha cara estava tão amassada, que não notaram a farpa no meu punho direito. 

Aquela surra me fez decidir por uma mudança total em minha vida, nem que para isso eu  tivesse que vender minha alma para o diabo. Tive alta na manhã seguinte e fui me  arrastando para a pastelaria, com o ódio queimando minhas entranhas. Eu ia me vingar  de todos, não teria pena de ninguém, esse mundo é feito de ira, raiva, desprezo,  indiferença, ninguém nesse planeta merece paz, e se dependesse de mim, a peste e a  miséria iriam visitar cada lar desse lugar maldito. 

Entrei no restaurante com dificuldade, o senhor Jin veio em minha direção, gesticulando  e falando alto, em mandarim, os clientes e os outros funcionários me olhavam assustados.  O velho canalha me mandou ir para casa e só voltar quando estivesse em condições de  receber o último salário, eu estava demitido. 

Não sei como consegui chegar em casa, o mundo se transformara em uma roda gigante.  Avancei, agarrado nas paredes ou em qualquer coisa que me desse apoio e, com passos  claudicantes, cheguei ao fétido cubículo, que o viado do meu senhorio chamava de quarto.  Desmaiei na cama. 

Acordei com náusea e calafrios. Minha mão direita estava pior, inchada e vermelha. O  único remédio que eu tinha era uma ponta de baseado do dia anterior. Acendi-o com  dificuldade. Depois de dar três tragadas, tentei tirar a farpa com uma agulha. O bagulho  produziu um entorpecimento e diminuição da dor, mas a náusea teve seu desfecho com  fortes jatos de vômito. Senti falta da minha mulher e do meu filho, daria tudo para ter um  pouco de carinho naquele momento. Desmaiei de novo. 

Acordei no dia seguinte me sentindo um pouco melhor, pelo menos o mundo tinha parado  de girar. Peguei o celular e voltei a analisar as fotos tiradas na pastelaria, nelas poderiam  estar a saída desse estado de miséria. A foto que estava mais nítida mostrava o que parecia  ser uma pilha de metal dourado, o velho estava escondendo algo, e provavelmente era  dinheiro. Eu já sonhava com riqueza e com a possibilidade de, finalmente, realizar a  minha vingança. Eu destruiria todos os malditos que transformaram a minha vida em um  inferno, o motorista seria a minha sobremesa. Era preciso planejar bem, o que o velho  imbecil não sabia era que eu tinha feito uma cópia da chave da loja, para qualquer  eventualidade. Analisando a foto com mais cuidado, era possível distinguir uma figura  com olhos amarelos. Eu já tinha visto aquela figura em algum lugar, fui procurar no  material que tinha reunido sobre a cultura chinesa, na esperança de localizá-la. 

Dois dias se passaram desde os eventos violentos que havia sofrido, minhas costelas  doíam muito, o ferimento no punho havia infeccionado, minha mão adquirira uma cor  violácea, uma secreção purulenta escorria no local de entrada da farpa. Sabia que eu tinha que procurar um médico, mas decidi que, se tivesse êxito no caso do chinês, poderia  contratar os melhores médicos da cidade, para cuidar da minha saúde. 

Fui à pastelaria pegar meu último salário e assinar minha rescisão. O senhor Jin me  recebeu com uma mistura de raiva e alívio. Eu estava em petição de miséria, cheirava a  bicho morto em decomposição. Em uma das paredes do restaurante havia um grande  espelho velho, cujo desgaste pelo tempo distorcia a imagem refletida. Parei alguns  minutos para me olhar, minha imagem era assustadora. Meu olho esquerdo estava roxo,  meu lábio inferior inchado, minha roupa estava cheia de manchas de sujeira, sangue e  restos de vômito, eu parecia um mendigo louco. Ao contrário do que eu poderia esperar,  essa imagem estimulou-me ainda mais. Eu tinha que descobrir o mistério do quarto  oculto, esta era minha única saída, eu estava convicto de que o velho escondia um tesouro  lá.

Fiquei perambulando pela cidade, minha intenção era observar o entorno da pastelaria  após as 22h e traçar o planejamento da ação. Como não tinha achado nada em meu  material sobre a China, comprei um velho almanaque, em um sebo na avenida Passos,  sobre a mitologia de diversos países. O livro era antigo e tinha informações muito  superficiais, mas talvez achasse referências sobre a figura misteriosa capturada em minha  câmera.  

Minha saúde não estava nada boa, sentia tanta dor de cabeça que tive que deitar debaixo  de uma árvore no Campo de Santana, estava sonolento e com câimbras. Deitado ao  relento, folheei o velho almanaque, de forma displicente, até que me deparei com a figura de um demônio chinês, de nome Zhong Kui. Ele tinha olhos amarelos e era descrito como  um demônio suicida, comandante de uma legião de demônios e espíritos malignos. Essa  foi uma grande descoberta, desconfiei que o chinês safado fez um pacto com aquele  capeta. Se, além de pôr a mão naquele dinheiro, existisse a possibilidade de eu conseguir  um contrato com o maligno, seria maravilhoso.  

Já era noite quando abri os olhos, os portões do Campo de Santana estavam fechados.  Consegui sair de lá com muito esforço, por um buraco na grade. Fui contemplado com  mais alguns arranhões, provocados pela coroa-de-cristo que servia como cerca viva.  Cheguei à rua da pastelaria, que ficava bem no centro da parte histórica da cidade. A área  estava deserta; por coincidência, havia um despacho enorme na esquina da rua. A cena  da rua deserta junto com o ebó criava um clima tenebroso. Pensei ter visto um vulto se esgueirando junto aos prédios velhos e abandonados. Eu não estava passando bem, sentia  dores fortes no braço direito, onde estava o ferimento, e os calafrios indicavam que eu  estava com febre. Decidi que invadiria a pastelaria no dia seguinte. 

Acordei assustado, ouvi som de tiros bem perto de meu quarto. Levantei com dificuldade  e, cautelosamente, me aproximei da janela. Notei alguma coisa pegajosa no chão, que não  consegui identificar, o quarto estava em uma escuridão total. Olhei para o lado de fora,  com o corpo colado na parede. Pelo canto do olho, um movimento atraiu minha atenção.  Senti os pelos da nuca se arrepiarem, entre o som de um tiro e outro, virei o rosto na  direção do movimento e, antes de conseguir fixar o olhar, um par de olhos amarelos já  estavam a um palmo do meu olho roxo. 

― O que você quer de mim? ― a criatura perguntou. 

Ela falava em mandarim. Eu estava petrificado, o medo se espalhou por todo meu corpo,  como ondas de calor. Juntei todas as minhas forças, para balbuciar: 

― Poder.  

― Venha ao meu encontro ― ela ordenou. 

Acordei caído ao lado da cama. Levantei, sentindo pequenos espasmos nos músculos das  pernas, havia urinado na calça. Eu precisava resolver essa questão o mais rápido possível,  minha saúde estava perigosamente deteriorada, entretanto, o contato com aquela entidade  podia ter sido a melhor coisa que poderia ter me acontecido.

Esperei em casa até a meia-noite e depois fui andando até o centro da cidade, não porque  eu quisesse me exercitar, não queria era encontrar o filho da puta daquele motorista. A  noite estava com o céu coberto de nuvens, era uma noite particularmente escura. Fui  caminhando devagar, a dor no braço, por algum motivo que eu desconhecia, se espalhava  pela perna direita. Cheguei ao meu destino às 1h45. Ao lado da pastelaria havia uma porta  estreita, que dava acesso a um pequeno corredor onde depositávamos o lixo produzido na  cozinha e os restos de comida dos clientes. Abri a pequena porta que dava para a rua e  entrei no corredor, povoado de ratos. Procurei, no molho de chaves, a que abriria a porta  da cozinha, e a introduzi com cuidado, pensando na fortuna que me aguardava. A chave  não girou. Perplexo, fiquei olhando a fechadura, sem acreditar no que acontecia. Tentei  outras chaves, na esperança de ter me enganado. Nada. O velho canalha devia ter trocado  a fechadura! Pilantra maldito, como teria prazer em tirar a sua vida, da forma mais  dolorosa possível. Mas eu não estava derrotado, decidi entrar pelo buraco do exaustor,  que não tinha as hélices de ventilação, era apenas um buraco, com sua saída fechada por  uma grade. 

Arrastei, com dificuldade, um grande tambor de lixo que me permitia afrouxar os  parafusos da grade. Retirei o primeiro parafuso, totalmente coberto de óleo de cozinha  queimado. No segundo parafuso, o movimento de torção no pulso direito provocou uma  dor tão forte, que perdi o equilíbrio e despenquei, indo de cara no chão sujo. Respirei  fundo e voltei à tarefa algum tempo depois. Cansado e ofegante, retirei o último parafuso.  Com muita dificuldade, consegui entrar no buraco e caí pesadamente em cima do fogão,  totalmente lambuzado de óleo velho. 

Recuperei o fôlego e caminhei em direção ao altar do deus. Tateando no escuro, encontrei  o pequeno fecho que abria a porta estreita ao lado do altar. Passei, espremido, pelo  pequeno espaço, o óleo que ensopava minha roupa e pele facilitou o trabalho. A pequena  porta se fechou atrás de mim, com um pequeno ruído. Imerso num breu total, aos poucos,  meus olhos começaram a se adaptar ao escuro, até que distingui a presença diabólica de  Zhong Kui. 

Os clientes começaram a reclamar do terrível fedor que se espalhava pela pastelaria.  Então o senhor Jin Zu mandou que seus poucos empregados lavassem o salão e  procurassem algum animal morto debaixo do balcão. Todos se entregaram à tarefa de  limpar o lugar, até que o trabalho foi interrompido pelo aterrorizado grito da garçonete.  Branca como papel, apontou em direção ao altar, antes de desabar no chão, desmaiada.  

A polícia e o carro do IML vieram ao local, para retirar o que parecia ser um corpo  totalmente contorcido e em avançado estado de decomposição. O senhor Jin Zu, atônito,  perguntou ao perito, com seu português arrastado, por que o corpo estava todo retorcido  e com expressão tão assustadora, ao que ele respondeu: 

“Eu só vi isso uma vez na vida, ainda na faculdade, esse homem morreu de tétano.”



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