SOBRE O AUTOR
Natural de Londrina, Paraná, Ulisses Sawczuk é jornalista formado pela Universidade Estadual de Londrina e mestre em Mídia e Comunicação pela Erasmus University Rotterdam, dos Países Baixos. Atua como gestor de comunicação na Prefeitura de Londrina, onde ingressou em 2014. Criador de histórias desde a infância, escreve principalmente contos e crônicas, tendo publicado alguns de seus trabalhos em coletâneas e antologias. Sua prática jornalística e sua escrita literária influenciam-se mutuamente, em sua busca por uma linguagem clara, expressiva e precisa.
A CRÔNICA SEMIFINALISTA
A ressurreição
A primeira vez em que eu fui ao cinema, tinha seis anos de idade. Era 1993. Minha mãe me levou, junto com meu irmão mais novo e um primo um pouco mais velho do que eu, para assistir ao recém-lançado Jurassic Park no Cine Vila Rica, no coração do Centro Histórico de Londrina.
Tenho poucas lembranças daquele dia. Estou certo, porém, de que fomos caminhando até o cinema, pois morávamos perto dele e minha mãe não dirigia. Apesar disso, eu me lembro bem da impressão – ou, melhor dizendo, do impacto – que o filme me causou.
Aqueles dinossauros ameaçadores e estridentes, em dimensões descomunais na telona, me apavoraram, e a experiência foi tão intensa que fiquei doente. Mas passado o choque inicial, o Vila Rica se tornaria um espaço que marcaria as minhas memórias de infância e adolescência.
Ele, porém, não era o único cinema que eu frequentava. Na época, meu pai trabalhava em Ibiporã, cidade vizinha de Londrina, onde ficava o Cine Teatro Padre José Zanelli. Outro charmoso cinema de rua, aquele espaço era um luxo, ainda mais para uma pequena cidade do interior do Paraná, e de vez em quando meu pai levava meu irmão e eu para tomarmos sorvete e vermos filmes lá, aos fins de semana.
Entre o Villa Rica e o Zanelli, assisti a inúmeros filmes que fascinaram meus olhos de criança como O Estranho Mundo de Jack, O Rei Leão e O Máskara. Um pouco mais velho, já entrando na adolescência, me deslumbrei com Gladiador, em que Ridley Scott, Russell Crowe e Joaquin Phoenix nos levavam para as areias ardentes e ensanguentadas das arenas romanas. E, como bom fã de quadrinhos, vibrei com X-Men: O Filme, empolgado com a boa história e com as atuações de Patrick Stewart, Ian McKellen, Hugh Jackman, Halle Berry e Famke Janssen.
Mas, pouco depois disso, eu faria uma descoberta um tanto amarga, quando me dei conta de que, assim como as pessoas, os lugares também podem morrer. Em 2001, o Vila Rica fechou suas portas definitivamente, mergulhando as suas elegantes escadarias na escuridão. Os cinemas estavam sendo engolidos pelos shopping centers, e eu sentia que algo estava se perdendo. Afinal, para mim um shopping era (e é) um ambiente asséptico, frio e artificial, puramente comercial, enquanto um cinema de rua tem o apelo das praças, do movimento, do calor e da vida da cidade.
Os anos passaram rápido e eu, resignado àquela nova realidade, continuava indo ao cinema, refém daqueles espaços enlatados. Em 2010, porém, recebi com animação a notícia de que o Vila Rica seria reaberto, por alguns dias, para as exibições da Mostra Londrina de Cinema (atual Festival Kinoarte de Cinema).
Fui com bastante expectativa ao velho cinema para assistir aos filmes do festival, mas quando cheguei lá me deparei com uma espécie de Vila Rica zumbi. O espaço não tinha mais ar-condicionado, e a organização do evento havia colocado alguns ventiladores improvisados lá, que só faziam espalhar o ar fervente daquele mês de dezembro. As cadeiras do Vila Rica haviam sido cobertas por panos pretos, compondo um cenário um tanto tétrico. Ainda assim, contradizendo aquela atmosfera, o festival entregava um respiro, um lampejo de vida, embalado pelo espírito do fotógrafo londrinense Haruo Ohara, tema do curta-metragem de Rodrigo Grota que estreou como parte da programação.
Mais um salto no tempo e chegávamos a 2017. Eu caminhava pelas ruas do Centro Histórico, em uma tarde despreocupada, quando decidi passar por dentro da Galeria Vila Rica, o antigo centro comercial onde o cinema havia funcionado durante tantos anos. Ao fazer isso, tive uma visão surreal quando passei em frente às portas do cinema e percebi que estavam abertas. Tomado pela curiosidade, não resisti e fui entrando sem pedir licença – não que fosse necessário, pois não havia mais ninguém lá.
Como uma cápsula do tempo, o Vila Rica se mantinha intacto, idêntico às minhas memórias de infância, ainda que fantasmagórico. Tirei meu celular do bolso e fui fotografando tudo o que vi: o letreiro colorido, acima da bilheteria; as escadarias empoeiradas, com seus tapetes desbotados e puídos, que levavam à sala de cinema; e, em meio à penumbra da sala, as centenas de cadeiras, os enfeites de madeira de décadas atrás e o palco vazio, sobre o qual ficava a grande tela em branco.
Voltei para casa em êxtase e fiz um post no Facebook, em que publiquei as fotos que havia tirado e um breve relato da experiência. Em poucos momentos, a postagem recebeu dezenas, e logo centenas de curtidas e comentários, não só de meus contatos como de várias pessoas desconhecidas que compartilhavam, com nostalgia, as suas memórias do cinema. Bastaram algumas horas para que a publicação fosse transformada em matéria jornalística por sites londrinenses de notícias e, anos depois, os registros que fiz apareceriam até em uma exposição fotográfica sobre a história do Villa Rica, sem créditos ao autor (foi quando percebi que aquelas imagens já não eram mais minhas, pertenciam à cidade). Alguns comentários de anônimos e matérias jornalísticas afirmavam que o cinema estava sendo reformado, mas sem sair da esfera de boatos sobre qual seria o seu destino.
No ano seguinte, minha vida iniciaria um interlúdio em que meus horizontes cinematográficos se expandiriam para além do oceano. Morando e estudando em Roterdã, na Holanda, eu aproveitava aquele clima ventoso, gelado e chuvoso para ir várias vezes por semana aos cinemas da cidade.
Passei a conhecer em profundidade cada espaço e sua personalidade: o sofisticado, clássico, intelectualizado e um tanto aristocrático LantarenVenster; o antiquado Cinerama, com sua aura (talvez proposital) de cinema decadente da década de 80, com atendentes vestidos em estilo retrô que pareciam viajantes no tempo; e o meu favorito, o Kino, reduto dos hipsters, que em sua programação mesclava filmes clássicos com obras contemporâneas e alternativas.
Cheguei, inclusive, a assistir a filmes brasileiros nesses cinemas. No Kino, assisti à Vida Invisível de Eurídice Gusmão em uma sessão que foi seguida pela apresentação musical de uma banda formada por holandeses e brasileiros, que tocaram alguns clássicos da MPB. A vocalista holandesa cantou As Vitrines, de Chico Buarque, cuja letra casava perfeitamente com aquela noite chuvosa, em que as luzes coloridas da cidade se refletiam nas poças d’água. Já o Cinerama foi o local onde assisti a Bacurau, durante o Festival de Cinema de Roterdã, o IFFR, e acompanhei na sequência um instigante debate com a presença do codiretor Juliano Dornelles.
Ir a esses cinemas de rua era uma experiência que recuperava, para mim, algo que havia sido perdido, pois aqueles eram locais completamente dedicados à arte cinematográfica e sua fruição, e não apenas espaços acessórios, asfixiados e perdidos em meio ao bombardeio comercial e publicitário dos shopping centers.
Voltei para Londrina em 2020, no auge da pandemia de coronavírus. Naquela época, todos os cinemas estavam fechados e, inclusive, muitos pretendentes a futurólogos afirmavam ser iminente o fim das salas de cinema, atacadas não só pela pandemia como também pela competição impiedosa das plataformas digitais de streaming.
Poucos meses após meu retorno, fiquei sabendo, com perplexidade, que a reforma do Villa Rica, iniciada em 2017, continuava em andamento. Fui visitar o espaço e vi que ele começava a ganhar vida, recuperando suas antigas formas e cores. Conversei com as pessoas que trabalhavam nas obras e elas me confirmaram que a intenção era que o cinema voltasse a exibir filmes. Comecei, então, a acreditar que aquela ressurreição fosse possível.
Em 2021, com o arrefecimento da pandemia e a flexibilização das medidas protetivas, os cinemas começaram a reabrir e o milagre foi então concretizado. Completamente restaurado e revitalizado, agora chamado de Espaço Villa Rica, o cinema ressurgia, com a ousada proposta de manter uma programação dedicada a filmes de arte, clássicos e alternativos.
Esse milagre foi acompanhado por outro, não menos impressionante, que foi a retomada da exibição de filmes pelo Cine Teatro Ouro Verde, também voltado a uma programação menos comercial e mais artística. Projetado por Vilanova Artigas, ícone da arquitetura modernista, e inaugurado em 1952, o Ouro Verde tinha sido destruído por um incêndio em 2012 e reaberto em 2017, após sua reconstrução. Já fazia décadas, entretanto, que seu palco era utilizado exclusivamente para apresentações musicais e de teatro, deixando de lado o “cine” no nome do espaço.
Ainda se recuperando da pandemia, Londrina passava a contar com dois cinemas de rua dedicados a filmes alternativos e de arte, algo raríssimo para uma cidade brasileira de porte médio e do interior. Logo me tornei um frequentador regular do Villa Rica, que voltou à vida anabolizado, oferecendo não só sessões de filmes como também apresentações de dança, teatro e música, palestras, cursos e outras atividades.
Algo que me agrada bastante no novo cinema é que seus programadores têm procurado privilegiar a exibição de filmes brasileiros no espaço. E foi lá que, em setembro de 2023, tive a oportunidade e o prazer de assistir a Retratos Fantasmas, filme-ensaio de Kleber Mendonça Filho que mescla elementos de documentário e ficção para contar, com lirismo, a história dos cinemas de rua de Recife. Ao passar por aquela experiência cinematográfica única, não pude deixar de notar os paralelos entre a trajetória das salas de cinema da metrópole pernambucana e dos cinemas de rua de Londrina. Todos os elementos estavam lá: a decadência dos centros das duas cidades, causada pela especulação imobiliária, o engolimento dos cinemas de rua pelos shoppings, o apagamento de memórias...
Naquele contexto, o Villa Rica se tornava, ainda mais, um espaço de resistência – algo que foi reforçado pelo debate que se seguiu ao filme, e que contou com a presença do cineasta Rodrigo Grota, do crítico de cinema Carlos Eduardo Lourenço Jorge e do antigo projecionista e atual curador da programação do espaço, André Oliveira.
Em certo momento da discussão, quando se falava da história dos cinemas de Londrina, uma antiga fotografia em preto e branco da antiga sala do Vila Rica, mostrando dezenas de cadeiras vazias, foi projetada em dimensões imensas na tela, atrás dos debatedores. Percebi, então, que aquela imagem era uma espécie de negativo, um espelho que refletia de forma invertida a sala onde se realizava o debate.
Uma plateia real, de carne e osso, contemplava uma audiência fantasmagórica e ausente, de décadas atrás, naquele mesmo local, derrubando os limites entre tempo e espaço. E, situados no limiar entre as duas dimensões, aqueles três personagens, cada um tendo contribuído para o cinema de Londrina de alguma forma, debatiam o passado, o presente e o futuro dos espaços dedicados à arte cinematográfica. Naquele instante atemporal, senti, talvez, alguma esperança em relação aos dias que virão.
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