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Texto de apresentação de "Urdindo Palavras no Silêncio dos Dias" — por Cândido Luís Vasques, editor da Casa





Das ilhas de Vera Poeta à Ilha de Vera Cruz

 

 

olha o marzão de Cabo Verde, Vera poeta

(Gerardo Mello Mourão)

 

Tomei conhecimento da obra de Vera Duarte enquanto saciava a minha sede por literatura de expressão portuguesa que fugisse do eixo Brasil-Portugal. O legado cultural da civilização lusa muito me encanta — e aqui não entro em questões políticas e coloniais, tão problemáticas e tão centrais para os países que conquistaram suas independências no século XX, e, por isso mesmo, também para os seus poetas, como é o caso de Vera; mas... como eu poderia dizer? Trato de questões espirituais, espirituais, esta é a palavra, pois, depois de tudo, com justiças e injustiças, méritos e deméritos marcados ao longo de uma fascinante história, algo nos irmana, algo nos faz companheiros, ainda que divididos por um mar de distância, algo, um pecado original em comum, tão nosso... Esta sina de falar português.

Em 2021, Vera aceitou o meu convite para compor o júri internacional dos textos finalistas no 2° Prémio Internacional Pena de Ouro, abrilhantando o evento. Contaríamos com uma das maiores escritoras do arquipélago, representando a sua jovem nação. Fiquei muito feliz — uma felicidade que se repetiria no ano seguinte, quando Vera foi jurada novamente.

Porém nada é fácil nesta vida. Eu queria conhecer mais a sua obra, queria ler mais. Mas os livros da autora eram de difícil acesso no Brasil — e ainda o são, infelizmente. Para se ter uma ideia, alguns chegam a custar cerca de dez vezes mais do que se fossem editados diretamente em terras brasileiras. Não que isso fosse uma surpresa para mim: o mesmo havia se sucedido com o Arménio Vieira, outro grande poeta cabo-verdiano que eu tinha a curiosidade de ler uns anos atrás, e o que conseguia dele eram alguns poemas esparsos na internet... Um pecado. Um desleixo para com a nossa cultura.

Bem, editamos o Arménio, o primeiro Prêmio Camões de Cabo Verde. E agora, com este livro, editamos a Vera Duarte, outra autora cabo-verdiana imprescindível, que coleciona prêmios em sua exitosa carreira literária. Autora que, quem sabe um dia, também receberá o Prêmio Camões. Quem sabe? A primeira mulher cabo-verdiana a recebê-lo...

Mas a história de nossos contatos que redundaram na presente edição tem mais alguns detalhes interessantes. Quem me conhece sabe que, na minha profissão de editor, sempre estou buscando redescobrir grandes obras ocultas, escondidas, de difícil acesso; em outras palavras: esquecidas injustamente. Acho que este é o mister mais nobre do editor: fazer com que as obras que merecem, vejam a luz do dia. Isso me levou a tomar conhecimento de um grande poeta brasileiro, infelizmente com livros esgotados (e cada vez mais raros), o Gerardo Mello Mourão. Um poeta de talento e cultura, homem de gênio, que, já na maturidade, escreveu uma obra magnífica, uma epopeia publicada em pleno século XX, uma epopeia que ecoará pelos séculos: a Invenção do Mar. Livro comparado a Os Lusíadas. E não sou eu que o afirmo, em minha humilde e limitada posição, mas o grande crítico literário Wilson Martins.

Pois bem, nessa obra, há os seguintes versos: “olha o marzão de Cabo Verde, Vera poeta”. Um dia, a esmo, folhando-a, reli-os e me arrepiei — seria a Vera que conheço?!

Ora, Cabo Verde é um país pouco populoso. Não deve contar com muitas Veras; tampouco muitas Veras que sejam poetas. Mais ainda: havia uma nota que especificava a referência: “ref. a Vera Duarte, poeta de Cabo Verde”. Haveria outra Vera Duarte poeta em Cabo Verde? Difícil! E meu coração bateu mais forte!

Então lhe escrevi. E recebi a confirmação: sim, a grande poeta Vera Duarte conhecia o grande poeta Gerardo Mello Mourão! Brasil e Cabo Verde apertavam as mãos, como o fazem nesta edição!

O que senti, não sei explicar... Talvez o leitor não entenda o meu entusiasmo, mas conto essa pequena passagem para ilustrar como algo, no fundo, nos liga a todos, nós, os povos falantes de português, lusófonos, lusíadas. A autora, acredito, talvez aprove o que falo mais no sentido da “lusa língua”, de Tony Tcheka (meu amigo Tony é de Guiné-Bissau, nação irmã de Cabo Verde), do que da célebre “última flor do Lácio” de Bilac, conforme o leitor verá adiante. Esta lusa língua que, segundo Tony, “é amiga, fraterna, e arauto”, e “ora é ponte” e “ora é chave para ganhar espaços dantes negados”. Esta lusa língua, que se torna instrumento dos oprimidos, os quais absorvem-na, moldam-na para si, nos seus conformes, fazendo-a elemento da mestiçagem, e que a nossa Vera poeta, “sacerdotisa da mestiçagem”, bem diz que transita, metamorfose poética que é, na “carne viva da poesia”...

Mas este livro, tão pessoal, não está especificamente voltado para a celebração da lusofonia, ainda que celebre a palavra, ainda que conte com o belo poema “Manifesto”, em que o eu-lírico especifica sua visão sobre a língua portuguesa, ainda que celebre a força da poesia... Este livro passeia por vários temas, contando com poemas de várias formas (e também com prosa poética). Há a revolta amargurada pelas injustiças sociais e pelo racismo; há o amor profundo pela África; há a nostalgia do amor adolescente, juvenil, com suas delícias e agruras; há o flerte com o crioulo para possibilitar a expressão poética, o crioulo que chega a tomar conta da linguagem, ganhando até mesmo poemas completos; há a própria “crioulidade” arraigada da autora; há felicidade também, ainda que a poeta tenha plena consciência de que sempre existe “esta estranheza perante o ápice da felicidade como se não fôssemos feitos para sermos felizes”; há versos que celebram e constatam o poder da poesia, a função da poesia (“Vem-me oh poesia. [...] Vem afagar com teu manto protetor este corpo que já perdeu o sentido da vida”), assim como há o amor às palavras (“Por isso amo as palavras/Porque elas são redentoras/[...] Porque elas me salvam de mim própria”); e, o que para mim é um traço muito interessante e surpreendente dos autores do arquipélago, há, também, este elemento: a universalidade.

São, portanto, 100 poemas, melhor dizendo, 100 textos poéticos, 100 textos plenos de poesia, que compõem um livro plural, plural na temática e plural na forma, e, penso eu, também na fonte de inspiração, mas que guardam em comum os tempos estranhos em que foram gestados — tempos de pandemia. Tempos extraordinários que não impediram a poeta de urdir, no silêncio dos dias, a sua teia poética, na qual bem caímos, com muito gosto, para nela nos demorarmos.

Mais não digo. Que o leitor brasileiro possa desfrutar do livro que afortunadamente pode ter em mãos. Já era hora desta obra cruzar o Atlântico, partindo de Cabo Verde, das ilhas de Vera poeta, para chegar ao Brasil, a grande Ilha de Vera Cruz, país imenso, lusófono por excelência, que leva adiante o vasto legado da lusa língua.

 

 


Cândido Luís Vasques

Rio Pardo (RS), Brasil

Janeiro de 2024



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