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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS VENCEDORES: WALTER PAULO SABELLA — 2º LUGAR/SEMIFINALISTA CATEGORIA CRÔNICA, FINALISTA CATEGORIA POEMA

Atualizado: 3 de set.

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SOBRE O AUTOR


Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Nascido em Adamantina, interior paulista (1951), possui licenciatura plena em Letras  (língua portuguesa e literatura brasileira), desde 1972. Ex-professor de língua e literatura. Cursos de extensão nas áreas de “Expressão e Comunicação” e “Estrutura e Diacronia”. Publicou, dentre outros trabalhos, na área literária, Os Deuses do Caminho (Editora Kasyl, 1974), tendo sido coautor da antologia Rompendo a Barreira (Editora Ateniense, 1991), além de haver publicado poemas, contos e crônicas em jornais, revistas e sites, dentre os quais, a Revista Literária da Academia de Letras do Ministério Público de Minas Gerais. Prêmio Nacional de Poesia do Instituto Nacional do Livro (1º lugar, 1971). Membro da Comissão Julgadora do I Concurso Literário da Associação Paulista do Ministério Público. Militou no jornalismo e na radiodifusão, tendo sido correspondente dos jornais O Estado de São Paulo (1970/1971),  Jornal do Comércio (1970/1972),  editor de O Adamantinense (1968/1975) e Folha Acadêmica, suplemento de literatura com circulação na região Oeste do Estado de São Paulo (1971/1972). Editor, redator e apresentador de noticiários nacionais e internacionais nas emissoras de radiodifusão da Rede Brasil/Organização Pedroso Junior (1967/1976), com atuação em assessorias de imprensa de órgãos públicos (1969/1972). Exerceu a advocacia (1978/1979), foi promotor de Justiça do 1º Tribunal do Júri da Capital de São Paulo (1983/1986), exerceu mandato legislativo (19731976), presidiu a Associação Paulista do Ministério Público (1992/1994), foi Secretário-Geral da Confederação Nacional do Ministério Público (1987/1990). Curso de Pós-graduação em Direito na USP e ex-professor de Direito Administrativo em várias instituições e cursos preparatórios para concursos públicos, dentre os quais o Curso Damásio de Jesus. Membro de Comissões de Concursos de Ingresso na Carreira do Ministério Público (três concursos, 1998/2000, disciplinas de Direito Constitucional e Direito Administrativo). Exerceu seis mandatos como Conselheiro eleito do Conselho Superior do Ministério Público Paulista e é membro nato do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça, tendo assumido em diversos períodos, como conselheiro mais antigo, o cargo de Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo. Premiado em várias edições do Concurso de Melhor Arrazoado Forense do Ministério Público do Estado de São Paulo, na década de 1980. Integrou as comissões de juristas que elaboraram os anteprojetos das Leis Orgânicas Nacional  e Estadual do Ministério Público, bem como as propostas de capítulos do MP nas Constituições Federal e Estadual Paulista. Sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e Membro da Academia Brasileira de Direito Criminal, desde 1997. Coordenador e coautor da obra Ministério Público -Vinte e Cinco Anos do Novo Perfil Constitucional, bem como coautor do texto Memórias das lutas pela obtenção do texto do Ministério Público na Constituição de 1988 (Malheiros Editores, 2013). Possui teses, ensaios e artigos jurídicos publicados em revistas de circulação nacional, dentre os quais, Edições Especiais -Revista dos Tribunais 100 anos, Revista de Processo  (Editora RT), Revista Justitia (PGJSP/APMP). Agraciado com o Colar do Mérito Institucional da Confederação Nacional do Ministério Público e com o Colar do Mérito Institucional do MP de São Paulo. Além de 2º colocado na categoria crônica, foi, também, finalista na categoria poesia e selecionado com outra crônica no 2º Prêmio Prata da Casa.



A CRÔNICA VENCEDORA (2º LUGAR)


A OFICINA


Éramos três a conversar, no pequeno estabelecimento do centro velho. Uma oficina, vários ofícios; o engraxate, a costureira e este cronista, embora ali estivesse, ainda, o sapateiro, respirando o universo próprio de seu mutismo, alheio à prosa e aos circunstantes. 

Distante de sua gente, que ficara no interior do Ceará, a artesã dos remendos contava sua epopeia de migrante, enquanto punha alinhavos nas roupas surradas de seus fregueses, descrevendo paisagens do sertão estorricado, povoado de carcaças dos bichos em torno dos buracos que foram açudes. 

O engraxate, batendo os panos sobre os meus sapatos, produzia um som de percussionista, e ensinava aos desinformados que no subsolo daquela terra em cinzas, coberta de ossadas animais, havia um colossal lençol freático, concluindo, pois, que a solução para tudo estava li mesmo, debaixo dos pés dos sedentos, bastando abrir poços artesianos, ao invés das lodosas cisternas. Nada disse, nem era previsível que o dissesse, sobre a provisoriedade dos rios em parte daquele bioma, impedindo lençóis permanentes, sem contar os terrenos sedimentares, de consistência pedregosa, oriundos da elevada evapotranspiração. 

A cidade tem muitos desses lugares modestos, em que profissionais de alguns ofícios se agrupam para ganhar o pão de cada dia, dividindo as despesas da locação. Ouve-se de tudo, como nos parlamentos e nas barbearias, e é certo que os habituês dessas casas de serviços mentem menos que os integrantes das casas parlamentares. Existe a chance de aprender algo, quando menos, a conhecer as gentes, o que muito importa. Pobre é o homem que não conhece o povo, o seu povo, essa entidade multifária e ambígua, de que, por vezes, nos excluímos como se fôssemos de outro planeta.

Curioso que tão numerosa universalidade de pensantes encontre abrigo conceitual em tão singelo dissílabo: povo. Mais curioso é que muitos vocábulos ligados à ideia de altas densidades demográficas sejam igualmente monossilábicos ou curtos: clã, grei, massa, raça, tribo, gente. Malgrado o viés de acomodar os indivíduos que compõem o povo nas valas da estereotipia, ainda que restrita a segmentações sociológicas ou antropológicas, a verdade é que as criaturas dessa colmeia podem ser tão díspares umas das outras quanto os astros de uma galáxia, a começar pelas impressões digitais. 

Tive ouvidos para ambos, a costureira e o engraxate, por um bom quarto de hora, inclusive quando ambos falavam ao mesmo tempo, instigando-os a palrar (ou palrear), como dizem nossos irmãos lusos, bons palradores, a despeito da suave aura de melancolia a pairar nos ares de algumas regiões daquelas terras, de cujos mares saíram as caravelas, empurradas para estes trópicos pelos ventos que varrem o Atlântico.


Atento à tese das águas ocultas sob a caatinga, lá no fundo do chão, às evocações sofridas desfiadas pela mulher que lidava com as peças puídas de vestuário, esperei, em vão, um som qualquer do sapateiro, recluso no silêncio tumular de sua indiferença, às voltas com a missão de colar as solas gastas pelas andanças dos mortais que vão e vêm. 

Pendurados pelas paredes, feixes de cadarços para calçados de variadas cores, palmilhas e embalagens com tubos de pomadas para os incontáveis males que afligem os pés, sobre os quais transitam as pesadas ambições dos homens, além de outros sentimentos que acrescem toneladas às consciências de muitos. Sobre o balcão rústico, os indefectíveis cadernos de jornais populares, semiabertos nas páginas dedicadas às glórias do futebol e às misérias de ontem, cuja leitura atende às exigências estéticas e críticas de parcela do respeitável público leitor. Repentinamente, a fluidez narrativa da costureira tornou-se entrecortada por períodos de silêncio, inicialmente breves, progressivamente repetidos e longos, até que sua voz se embargou por completo, afogada nos soluços que a custo continha, enquanto passava as pontas dos dedos abaixo dos olhos, enxugando as lágrimas teimosas. O engraxate, de cabeça baixa, nada mais disse. 

Daqueles olhos encharcados de pranto jorravam torrentes de uma solidão infinita, longamente reprimida entre as muralhas de concreto da cidade. Como as paredes de um dique em rompimento, aquele rosto expulsava, em caudais, a nostalgia, a lembrança das caatingas ermas, ressequidas e mortas como as amplidões desérticas, as ossadas dos animais tombados pelo fogo das estações, os troncos tenazes dos escassos mandacarus sobreviventes e, sobretudo, as imagens de sua gente, respirando as brasas daquele mundo longínquo. 

Nem mesmo as oceânicas reservas subterrâneas que inundavam a imaginação do engraxate visionário poderiam regar o areal tristonho e sem oásis daquela alma solitária de migrante.

Da calçada, prestes a cruzar a rua, voltei-me para o interior da oficina: em seu microcosmo físico, três personagens, três mundos; o inaudível garantidor do direito de ir e vir, o percussionista navegador das águas da utopia e a ave de arribação portando nas asas o próprio ninho deserto. 

À minha frente, os ônibus de assentos encardidos, cuspindo fuligem negra, e os motoqueiros endoidecidos pela pressa, com suas máquinas de ronco estridente, cuspindo impropérios contra motoristas e pedestres.




A CRÔNICA SEMIFINALISTA


O HOMEM VITRUVIANO


Indiferente a tudo, aprisionado no cárcere de sua introspecção, imobilizava-se ali, no coração da grande cidade, sentado sobre o concreto sujo da calçada, o homem seminu, tendo à mão direta um pedaço de giz branco, com o qual escrevia ou desenhava na superfície áspera chão. 

Os pedestres, apressados, tão logo o entreviam, tomavam rumo de desvio, passando ao largo de seus domínios. 

De alguma distância pude avistá-lo, apesar da escassa claridade, ganhando compreensão da cena com o avanço dos passos, até que, a alguns metros, desviei-me também, fixando nele os olhos, ao mesmo tempo em que, sem êxito, esforçava-me por entender a escrita ou o desenho lançado na tela do piso público.

Por cautela, embora curioso, não me detive, passando pelo homem do giz, mas voltei a cabeça, numa derradeira tentativa de apreender os detalhes do quadro oferecido pelo anoitecer. Nada acrescentei à colheita de minhas observações, salvo que se tratava de um homem certamente alto para os padrões comuns, esquálido, de pele crestada pelo sol, cabelos desgrenhados, barba crescida, torso coberto por andrajos encardidos, calças arregaçadas até os joelhos, pés descalços, unhas longas e tintas pela poeira negra do asfalto, tudo moldando a figura típica do morador de rua.  

Sentado em seu atelier, instalado sobre o lote de chão de que se apropriara, que as posturas municipais tratam, em linguagem técnica, como bem de uso comum do povo, o homem do giz tinha as compridas pernas estendidas  e abertas, distando entre elas o espaço de poucos palmos, a lembrar uma das posições do homem vitruviano, de Da Vinci, inspirado no arquiteto romano Marco Vitruvio Polli. Se estivesse em pé, com os braços na linha horizontal, estirados em cruz, mais vivamente lembraria o desenho renascentista. Não fosse pelo fato de achar-se assentado no passeio público, com a cabeça levemente inclinada em direção aos movimentos da mão com o giz, dir-se-ia estar ali a figura do gênio do vilarejo de Anchiano.

O homem concebido pelo arquiteto romano pré- cristão, depois aperfeiçoado por Da Vinci durante a alta Renascença, encaixa-se, com simetria e proporcionalidade, num quadrado e num círculo, cujas áreas totais são idênticas (quadratura do círculo). 

Bem por isso, a filosofia, indo além da perfeição visual da imagem, atém-se à simbologia plural da obra, alertando para o círculo como representação do divino, e para o quadrado como irradiação da divindade na matéria; alocada a figura humana em ambas as molduras geométricas, pretende-se detectar no conjunto a relação do homem com o universo, ou, ainda, na ideação postural da criatura, com os braços postos em linha longitudinal, lembrando uma cruz latina, plasma-se a verticalização do homem na busca permanente do sagrado.

Agora, trazendo a cena de dias passados a estes instantes de reflexão, suponho que o homem vitruviano, prostrado no caminho dos passantes empurrados por suas urgências, nada sabe de tão engenhosas elaborações da criatividade humana. Para ele, o coração da cidade é um deserto sem oásis. Suas cogitações sobre o sagrado e o universo certamente conseguem apenas devassar, com as armas da imaginação, o que pode existir além das paredes inexpugnáveis do restaurante, cujo acesso se dá por uma escadaria que leva a algo inalcançável. O sagrado, o universo, tudo quanto aspira oculta-se após aquelas paredes que assemelham muralhas de fortalezas, e que exibem um indecifrável logotipo comercial. Ademais, entre elas e o homem, erguem-se aqueles proibitivos degraus. Inexiste placa impeditiva de entrada, mas o homem a enxerga e a lê. Mais que isso, ele a intui. E o que lhe diz a invisível placa é ‘não’. Diz para ele, mas não o diz para outros, que sobem e descem, livremente, os degraus. 

Menos de três horas transcorreram entre esse encontro e minha passagem de retorno pelo mesmo sítio que o nômade maltrapilho declarara de utilidade pessoal e exclusiva. Raros transeuntes na região, sob uma garoa fina, exibiam no andar a pressa de vencer a solidão da rua e chegar ao lar. O homem do giz também se fora, como se vão os moradores das ruas, pois estão sempre indo, malgrado não saibam para onde. Sua jornada é uma sucessão de chegadas e partidas, como tropas em campanha, que estacionam a intervalos breves. 

Na verdade, eles vagam, pois notário algum lhes concede título dominial sobre as áreas de suas ocupações fugazes. Seu mapa de deslocamentos constantes, como um emaranhado de riscos errantes, conduz a todos os lugares e a lugar algum. É o nomadismo da miséria. 

No lote de chão horas antes habitado pelo homem vitruviano, exatamente defronte o grande restaurante de portas cerradas, restara apenas o produto de seu concentrado labor com o caco de giz. Em letras de forma, grandes e entre si espaçadas, estava escrita na lousa sórdida, pisada pelo desdém dos homens, a palavra FOME. 

O homem vitruviano, ou, diriam alguns, o seu oposto, o arremedo da perfeição renascentista, cumprira o seu papel, deixara sua mensagem e partira. Seria o esfarrapado um mensageiro? De quê? De quem? Importa refletir, visto que o mundo teve muitos mensageiros, ignorados pelas eras, e muitas mensagens, jamais compreendidas. Ademais, as espécies de fome e de famintos são incontáveis. É preciso distingui-los. Fome de poder, fome de riquezas, fome de domínio, fome de sexo, fome de saber, fome de amor, fome de destruição, fome de sangue, fome de justiça. Os tiranos, as meretrizes, os sábios, os miseráveis, os conquistadores, os potentados, os algozes, as vítimas, todos são impulsionados por algum tipo de fome. Monarcas ou vassalos, todos se encaixam nalgum subtipo de faminto. 

Os que não identificam o tipo de avidez que os encara, podem acabar abocanhados, devorados, engolidos como barcos frágeis tragados pelas tempestades ou como ovelhas surpreendidas pelos predadores. 

O homem vitruviano, semivestido de seus molambos, precocemente encarquilhado pela inclemência da crua liberdade de seus dias, neste instante -quem sabe- rabisca sua mensagem noutro sórdido sítio de chão, enquanto os transeuntes se desviam dos sagrados domínios de seu universo e de sua fome, que é apenas a mais conhecida de todas as fomes que atormentam os seres humanos.

É provável que o mistério das coincidências o tenha conduzido a escolher, na vastidão dos logradouros públicos da metrópole, um sítio qualquer de calçada, próximo às portas de algum dos milhares de restaurantes que aplacam a gula dos homens.




O POEMA FINALISTA


RECOMEÇO


-O que trazes?

Indagou-me o guardião.

-Trago preces, incontáveis,

crucificadas no murmúrio dos lábios

E fantasias que abortaram

no ventre voraz do tempo


Trago fadigas que jamais souberam

a noite do repouso

E poemas que jazem na tumba do silêncio,

estranhos ao fascínio das palavras

Trago espantos cativos da mudez

E aventuras que finaram no desejo vão


Trago beijos imaginários,

distantes do lodaçal das bocas

Infensos ao asco da carne

E olhos secos de pranto,

Da secura ímpia dos areais mortos


Trago ternuras que jamais dei,

como a figueira estéril da rota de Betânia

Como o servo que enterrou o talento,

temeroso da crueza do amo.

E há esta arca de segredos inconfessos

que valem o peso de mil pedras do templo


Não sei como vim.

Se no lesto giro dos astros

Ou nas plumas ocultas do vento

Sob hosanas de santas legiões

Ou pelas mãos tutelares dos anjos.


Minhas crenças adernaram

como velas rotas pela ira dos ares

E minhas glórias de ontem se mesclam

às cinzas das aldeias calcinadas

Em meio a tantos destinos fartos

aporto de mãos vazias.

Não me fiz lacaio das amarras da fé,

a mais feroz das fraquezas,

que fiou mortalhas para povos e eras

E, assim, não rogo bênçãos ou redenção.


Nem mesmo trago um lírio:

Os jardins morreram ao nascer o homem

E sequer tenho às mãos um lume de candil:

Às cegas, pisei o breu das trilhas


Não trago, ao menos, um bordão de peregrino

para suster a carga de meus débitos

ou me arrimar nos labirintos

Também não trago temores,

que geram deuses e demônios

algozes da razão e da vontade.


De tudo, após meus passos,

o epitáfio de um mundo findo

com suas relações extintas,

e as pedras de um mausoléu deserto

povoado de silêncios.


Por fim, redarguiu o guardião:

-Se é tudo quanto trazes

e tão pouco o que deixaste,

entra e te abriga

Enquanto os teares da Sorte

tecem os fios do amanhã.


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