2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: ADRIANA MOREIRA — CATEGORIA CONTO
- Casa Brasileira de Livros
- há 6 dias
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SOBRE A AUTORA
Adriana Moreira é escritora pós-graduada no curso de Formação de Escritores da PUC Rio.
Nasceu em Minas Gerais e atualmente mora na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro, onde graduou-se em Tecnologia da Informação, profissão que lhe permitiu viver em diferentes cidades do mundo, desenvolvendo uma visão mais multicultural e inclusiva do ser humano.
Com um olhar sensível e uma narrativa envolvente, Adriana já publicou suas obras em diversas antologias, inclusive na renomada Off Flip, onde teve contos e crônicas selecionadas como destaque, além de cinco outras antologias de Contos, a citar “20 Contos 20 Autores volume 2” da Editora Nauta.
Seus projetos atuais incluem um primeiro livro de contos e um primeiro romance, em que trabalha enquanto compartilha sua fé e experiências em um blog de testemunhos, alcançando leitores em plataformas como Facebook, Instagram e TikTok.
A paixão de Adriana pela escrita a torna uma voz autêntica e promissora na literatura contemporânea.
O CONTO SEMIFINALISTA
RECORTE DE LUA CHEIA
O decote era em V, com uma fenda profunda e reveladora. Destoava do bar, que normalmente lembrava uma choupana, mas, naquela noite, excepcionalmente, erguia-se, valorizado pelo céu claro e salpicado de estrelas.
— Que noite linda a de hoje! Lua cheia.
— Verdade.
Não achava linda coisíssima nenhuma, a lua cheia lhe trazia arrepios. Mas melhor concordar, para não precisar desgrudar os olhos do vestido, muito menos do decote generoso, insinuando os seios fartos, com um vale de promessas entre eles. Podia ver que eram brancos, leitosos, mas tinha que imaginar os mamilos: seriam rosados como as turmalinas? Ou escuros como as ágatas marrons? Ficariam rijos ao seu toque?
Contrariado, escutou uma voz interromper seus devaneios.
— Em que você trabalha mesmo?
Sacudiu a cabeça, tentando se concentrar. Precisava ao menos fingir interesse.
— Trabalho no centro da cidade, em uma firma de Engenharia.
Percebeu a respiração, um pouco mais profunda, levantar levemente o decote. Os seios chegaram para frente, interessados. Ainda bem que as perguntas pararam por ali, porque não iria mesmo explicar que não era engenheiro, mas trabalhava na Contabilidade da firma — o terceiro emprego só aquele ano! —, com um salário de técnico que mal dava para pagar as contas.
O decote se virou para chamar o garçom. A perda do foco e a perspectiva da conta o irritaram um pouco, mas era só um chopp, e logo o visual voltou, tagarelando.
— Já namorei um engenheiro. Não deu certo, era casado. Foi uma decepção, ele disse que não podia largar a esposa, mas queria ficar comigo. Recusei, não quero ser como minha mãe. Foram muitos amantes, indo e vindo. Eu sempre achava que o da vez seria finalmente meu pai; sofria em cada separação.
Ele se esforçou para mostrar simpatia.
— Devia ser um otário esse tal engenheiro.
O decote se sacudiu, em uma risada meio sem jeito.
— Desculpa. Quando bebo, acabo falando demais.
Com a sacudida, uma gota da cerveja escorreu pelo recorte do vestido. Só podia ser provocação. Sentiu aumentar a ânsia de ir para um lugar mais reservado. Bom seria se não houvesse resistência, pois não gostava de receber um não como resposta. Sempre a mesma coisa: diziam “não”, querendo dizer “sim”. Mas ele já sabia bem o que fazer, um pouco de força, para mostrar a superioridade masculina, ajudava bastante. Até excitava mais. Riu consigo mesmo.
— Ninguém nunca voltou para reclamar.
Que bom que houve um momento de silêncio, assim ele podia, finalmente, focar no decote. A noite prometia. Até melhor oferecer mais bebida.
— Relaxa e toma outra cerveja, linda. Quero saber mais de você.
O decote se aproximou um pouco mais. Como era fácil simular interesse, chegava a ser divertido.
— Quer comer alguma coisa, princesa?
Lembrou-se da canção da banda Blitz: “Amor, pede uma porção de batata frita / Okay você venceu batata frita / Aí blá blá blá blá blá blá blá blá blá / Ti ti ti ti ti ti ti ti ti / Você diz pra ela / Tá tudo muito bom (bom) / Tá tudo muito bem (bem) / Mas realmente / Mas realmente / Eu preferia que você estivesse nua.”
Ah! Tudo a ver aquela música. Até se empolgou em perguntar um pouco mais.
— Você gosta de música? Tenho uma coleção maravilhosa no meu carro.
O decote subiu e desceu, assentindo. Notou uma pequena tatuagem acima do seio esquerdo. (Onde já tinha visto uma parecida com aquela?)
A pergunta que se seguiu soou como um alerta de que ele havia exagerado na indiscrição do olhar.
— Você também gosta de tatuagem? Tem alguma?
— Não. Só cicatrizes da vida mesmo.
— Destas também tenho várias. Conta alguma; você quase não falou de você.
Por aquela pergunta ele não esperava. Invasiva. Contou vagamente sobre uma briga de escola: seu melhor amigo; discussão por causa de mulher; nunca mais se falaram. Cautelosamente, omitiu o fato de não se tratar apenas do melhor amigo; mas sim do único amigo da vida. Com aquela briga, aprendeu a odiar ainda mais certos tipos de mulher.
— Briga de amigos é chato mesmo. Vai ver ele não era tão seu amigo assim, né?
— Vai ver.
— Conta mais alguma coisa.
Logo se arrependeu do rumo da conversa. Aquilo de cicatrizes rapidamente remeteu seu pensamento a uma situação que há muito tentava esquecer. De repente, sentiu como se as vozes e o barulho lhe acordassem pela milésima vez. Foi até a cozinha. O pai esfregava energicamente o chão, manchado de vermelho.
— Sua mãe resolveu ir embora. Bem neste dia em que a cozinha está uma bagunça.
Ele esfregou os olhos, como a criança de seis anos fizera um dia. Nunca tinha visto o pai fazer nenhuma das tarefas de casa; era sempre a mãe. Talvez ele estivesse limpando tanto porque tinha deixado entornar o vinho de que muito gostava, e agora estava com medo do vermelhão não sair mais do piso branco.
— Foi embora? — Tentou entender melhor.
— Foi. Foi embora para sempre.
— Para sempre? — Aquele era um tempo que ele não entendia.
— Já disse, menino, para sempre. Vai para o seu quarto que eu ainda tenho muita coisa a fazer. Para de atrapalhar.
Andou até o quarto, franzindo a testinha, até ali livre de linhas e ansiedades.
— Mas antes de eu dormir, mamãe me mostrou a lua cheia e cantou para mim. Nem se despediu. — Foi o que ele repetiu para si mesmo, dia após dia, noite após noite, ano após ano, até que acreditou ter esquecido. Daquela noite, restaram alguns confusos fragmentos de memória e a dificuldade de dormir: o sono era excessivamente leve e entrecortado. De saldo, recebeu a insônia por companheira e a desconfiança por guardiã.
Os seios se mexeram, querendo saber se estava tudo bem. Suspirou, precisava focar de novo no vestido, no decote, no presente. O humor havia mudado; a ansiedade, aumentado. Seria bom ficar um pouco em silêncio, ter tempo de se recuperar. O assunto, no entanto, continuava rendendo.
— Se você não quer contar mais nada, deixa que eu te conto uma das minhas cicatrizes. É das grandes e ainda dói: a morte de minha irmã. Assassinada em um encontro às cegas. Uma tragédia, até hoje eu procuro por quem fez aquilo e quase destruiu nossa família.
Ele escutou em silêncio e, sem curiosidade alguma, em silêncio permaneceu.
O vestido se fechou, como se esperasse uma reação. Ele não gostou da sensação de cobrança, mas viu-se obrigado a responder, com uma empatia que estava longe de sentir.
— Lamento a sua perda. Vocês eram próximas?
— Minha irmã era tudo para mim. Nossa diferença de idade era mínima, fazíamos tudo juntas.
— Sinto muito mesmo.
— Lá estou eu falando demais de novo. Desculpa.
O decote se afastou, recostando-se na cadeira. Parecia já ter bebido o suficiente.
— Vamos, meu anjo, dar uma volta. Quero te conhecer melhor.
Que bom que o carro estava perto! Seu carro, sua paixão. Aliás, se aquele calhambeque falasse, ele provavelmente iria elogiá-lo pela escolha do vestido e, principalmente, do decote. Companheiro e cúmplice, fiel e inseparável em tudo que viviam juntos, o carro valia cada mensalidade que ele ia pagando, com dificuldade, mas muita constância. A coisa mais constante da sua vida, desde que saíra do colégio.
Parou perto de um parque, um lugar estrategicamente escuro e deserto. Não precisava se segurar mais. Buscou o decote, que se esquivou.
— Não...
Começou a perder a paciência. Encheu a mão em direção aos seios fartos.
— Ai. Você está me machucando.
O decote se desalinhou. Mais provocação e desejo ainda. Sentiu algo duro...
Era uma arma, na cabeça.
— Sai do carro agora. — Ordenou uma voz masculina, vinda de fora. Uma mão forçava a porta, enquanto a outra cuidava da pistola que adentrava a janela e lhe pressionava a têmpora. Desesperou-se.
— Não, meu carro não.
Saiu do carro, mas, na iminência de um suposto assalto, precisava defender seu único amigo, o parceiro de muitas ideias e quatro rodas. Reagiu. Ou pelo menos pensou ter reagido, já que as coisas aconteceram depressa demais. Foi derrubado pelo som do estopim e pela força de uma bala de chumbo, que, inclemente, passeou por entre músculos e ossos, até atingir seu coração.
Ao cair, sentiu a dureza do asfalto. Viu o homem aproximar-se do decote. Estranho ver ambos saírem correndo juntos, deixando o carro para trás; a mão do homem tão próxima do vestido que parecia roçar um dos seios. Ou estava delirando e o homem corria e tocava a lua?
Lembrou-se do pai. Antes de a mãe ir embora para sempre, o pai também roçava o seio da empregada e ria para ele, com uma piscadela de cumplicidade que o incomodava.
— Vadia. Mulher nenhuma presta.
A vista começou a ficar turva. Fixou os olhos no céu. Sentiu falta do colo da mãe... era redondo e imaculado como a lua cheia. Tentou se lembrar da oração que ela lhe ensinava a rezar, enquanto o pai debochava.
— Não escuta essas baboseiras de mulher.
— Pai Nosso, que estais no Céu...
— Será que o Céu existe mesmo? E o inferno?
Com certeza, a lua existia. A mãe lhe falava dela; às vezes ficava manchada de vermelho, como sangue. Pensou em ir voando para lá e, com sorte, encontrar a mãe. Tal pensamento o aqueceu, contrariando o asfalto gelado, que insistia em sugar seu sangue, com caninos pontiagudos como presas cruéis.
Notou que a mãe tinha asas que podiam voar e até atingir as estrelas. Seu colo, farto, quente e macio, envolveu-o em um abraço. Estranhou a sensação, que estivera congelada por tempo demais.
Achou que era hora de parar de lutar. Sem resistir, ele, pela primeira vez em décadas, aproveitou a aconchegante tragicidade do momento, fechou os olhos e adormeceu. Profundamente.
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