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2º PRATA DA CASA | CONHEÇA OS SEMIFINALISTAS: FRAN MACHADO — CATEGORIA CONTO

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    Casa Brasileira de Livros
  • 23 de jul.
  • 11 min de leitura
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SOBRE O AUTOR


Oii! Eu sou a Fran eu tenho 21 anos,estudo administração, e sou apaixonada por leitura e escrita criativa desde um sempre.


O CONTO SEMIFINALISTA


Santa


Tenho para mim que já nasci caminhando. Saímos da estrada de chão batido e chegamos no asfalto, com placas orientando as retas e as curvas, e carros passando atrás de carros, grandes, pequenos, coloridos e barulhentos; andávamos como eles, como uma matilha. Papai era o último. Sentia, a cada passo, o solado do meu sapato me dizer que estava indo embora. O meu pé já sentia a formação do cimento aerado e o contraste com cada irregularidade e pedra solta. Imaginei que o calçado da minha mãe e do meu irmão estivessem no mesmo estado, e parei de pensar em calçado ou desconforto quando olhei meu pai fazendo o percurso descalço. Parecia que não precisava de calçado, e nem fazia questão, caindo chuva ou ardendo ao sol.

O caminho era lindo e escasso de casas. O horizonte era formado pela combinação de montes e mais montes, cerros e mais cerros, e no encontro de quase todos eles se localizava com facilidade um córrego. A gente descia um, quando, em uma curva, havia uma gruta, minha mãe chamou assim. Tinha umas pedras na frente e umas flores azuis alinhadas formando um corredor, até uma casinha pequena feita de pedras redondas, que protegiam uma senhora negra pequena e desbotada, vestindo vestes azuis. Me apresentaram a ela, Nossa Senhora Aparecida. Mamãe mandou a gente rezar, agradecer pela vida, e rezamos. Não que eu soubesse o que era, mas a mulher, apesar de ter uns 30 centímetros e ser feita de pedra, realizava pedidos. Eu tive pena da santa ali, sozinha, longe de tudo, isolada em uma curva da estrada. Pedi à minha mãe para levarmos ela conosco; contra isso, mamãe falou da importância dela naquele lugar, protegendo não só a gente, mas todos os demais. Disse que ela não morava ali, era só uma representação, ela  morava no céu junto com os anjos.

Do lado da casinha da santa passava um córrego que sumia debaixo da rodovia.Havia vasos de flores formando um altar, composto pelo que sobrou de velas que se apagaram antes de terminar de queimar. No mais, era mata fechada. Julguei um bom lugar, e me conformei com a solidão dela também, porque não éramos só nós que ela tinha de visita. Muitos mais vinham e até traziam presentes. A mãe falou também que, da próxima vez, deveríamos trazer algo, como forma de agradecimento. Perguntei onde deixaríamos o presente, e ela me mostrou uma gaveta que ficava abaixo da santa. Era como um trabalho, as pessoas chegavam, faziam pedidos e, como agradecimento, deixavam os presentes. 

Eu conhecia algumas profissões: um tio era pedreiro, tinha motorista, médico, meu pai era trabalhador. Porém, não conheci outra mulher com um trabalho tão importante. Todas as mulheres que eu conhecia e conversava pareciam com minha mãe. Mudava um pouco o cabelo, umas eram mais altas que as outras, mais gordas ou brancas, mas não sabia que tinham uma profissão diferente. Todas elas eram mães e mulheres de alguém. Não sabia que era possível ter outra profissão. Tinha o conhecimento da mulher que eu não poderia ser ; ,amante, é um tipo de mulher sem marido ou que não respeita o que tem, que dorme com os maridos de outras mães, e elas não gostam. Elas eram feias e impróprias. Minha mãe conhecia uma e ela chamava de puta. Era ruim ser mulher solteira, deixada pelo marido, mas antes isso do que ser puta.

Não sabia como ela havia virado santa, mas naquele momento queria ser uma como profissão, apesar de ter que ficar menor e virar de pedra. Deveria ser um trabalho incrível realizar desejos e ser paga por isso. Meu irmão queria entrar para o exército, usar fardamento, defender o país, e me dizia que nossos pais se orgulhariam em contar isso para os outros. Eu não entendia bem o que era "profissão", mas achei que minha mãe e meu pai gostariam de falar: "Minha filha é santa, trabalha junto com a Senhora Aparecida."

A gente se despediu e estava saindo quando meu pai parou em frente à gaveta que servia de carteira para a santa. Ficou olhando, como quem tem dúvida de algo, e não falou nada. Puxou com força a gaveta, que abriu na segunda tentativa. Os presentes eram dinheiro em papel e moedas. Tinha bastante, várias folhas coloridas e várias moedas de tamanhos, espessuras e cores diferentes. Fiquei confusa com aquilo. A gente entrou na casa de trabalho dela, agradecemos pela vida, não trouxemos presentes, e na saída levamos o dinheiro que deram a ela. Com o solavanco do arrombamento da gaveta, a santa caiu. Meu pai pegou o dinheiro, minha mãe voltou para ajudar, e eu fiquei imóvel, meio abismada. Voltei a ter pena da santa, queria levantar ela, pedir desculpas, porque era o certo a fazer quando se faz algo errado ou quando se magoa alguém, e certamente ela estava magoada. Não o fiz. Papai já estava a caminho do asfalto, segui.

No restante do percurso, fiquei pensando como funcionava o trabalho da Santa, e o que aconteceria com os desejos, quais, meu pai havia furtado o pagamento, ela iria realizar? Os clientes seriam informados que o pagamento não foi recebido? Ou, depois de entrar na gaveta, já constava como pago? E pior, e se alguém muito bom tivesse feito um pedido muito importante, e a Senhora Aparecida até tivesse vontade de ajudar, mas não tivesse mais como, porque ela estava sem dinheiro?

A noite foi descendo junto ao manto da neblina, e essa lembrança passou a ter gosto de inverno, cheiro de frio. Não era palpável e sim indolor. As mãos congeladas não sentiam mais nada. Não sei por quanto tempo a gente já havia caminhado, mas fazia tempo. Saímos de algum lugar por algum motivo,não conhecia os detalhes, irriamos em busca de um pagamento. Não foi planejado, isso eu sentia pelo silêncio que pairava entre nós, silêncio de culpa, regado à dúvida e adubado ao medo. Ouvi minha mãe comentar que já ia anoitecer, não se enxergava muita coisa. Tinha uma névoa branca no ar, parecia neve, mas ela se desfazia quando tocava o chão ou tocava a gente, e era frio, muito frio. Eu usava um casaco rosa de zíper que, ao fechar, formava uma borboleta na frente. 

Nós já havíamos saído a tempo do asfalto aberto e do escritório da santa. Agora caminhávamos em trilhos de trem. Algo em mim queria seguir todo o percurso, equilibrando-se pelas laterais ou pulando de ladrilho em ladrilho, mas eu não pus em prática, pois achei mais sensato.A gente passou por umas duas placas no caminho, tinham letras nelas, grandes e pequenas. Eu não sabia ler, mas fiquei feliz em saber que estávamos em algum lugar importante, a ponto de alguém se preocupar em sinalizar.

Chegamos em um ponto de espera do trem, acredito, uma espécie de estação ferroviária minúscula. Além de um banco, havia uma sala com a porta fechada, e não havia ninguém. Devido ao frio, meu pai tentou abrir aquela porta, tentou algumas vezes, depois desistiu. Minha mãe mandou eu e meu irmão sentarmos no costado dela, e sentou ao lado, sobre um casaco estendido ao chão. Disse que a gente podia dormir, que ela iria também. Meu pai sentou no banco, em uma parte onde a luz do poste ainda o iluminava. Não disse uma palavra, e não lembro de ele se juntar a nós. Ficou sentado ereto, parecendo mais magro, alto e negro. A barba lhe cobria o rosto e escondia qualquer expressão, mas os olhos estavam abertos, grilados, olhando fixamente para algo que eu não via, porque a neblina já cobria qualquer resquício de terra.

Com os olhos já cerrados, não por sono, mas por obediência, tentei dormir. Apesar do casaco estendido sob nós, o que eu vestia, e dos dizeres da minha mãe de que, se ficássemos juntos, ficaríamos quentes, o chão era feito de pedra, moldado em lajotas quebradas e irregulares. Gelava e doía. A umidade do calçado, aquecido pela caminhada, agora se infiltrava na meia e chegava ao núcleo do osso, martelava lá dentro, parecia querer sair evaporado pelo olho em centenas de conta-gotas. Uma saiu, talvez duas, as outras eu amarrei na garganta junto com o barulho do vento que me fiz não escutar.

Não sei se dormi, ou por quanto tempo, mas abri os olhos e levantei quando minha mãe chamou. Já amanhecia. Minha mãe, uma mulher mais baixa do que o normal e mais sorridente também, magra, de cabelo preto escorrido, lambido como de costume em uma amarração só atrás da nuca, tinha bochechas gordas, olhos pequenos e amendoados, e não se considerava preta, ela era morena, e os filhos dela também. Pegou a sacola que carregava, me alcançou a mochila e disse que logo chegaríamos à casa do tio, e era para a gente se apressar, porque o pai estava com pressa.

Meu pé formigava, daqueles formigamentos que parecem que não se tem pele, só osso. A cada passo, a sensação piorava, e a cada passo eu tentava caminhar o mais normal possível. Meu pai perguntou se alguém estava com fome. Minha mãe disse que sim, meu irmão levantou a mão, eu sorri. Ele nos informou que estávamos perto, e com isso, a fome que eu não lembrava de ter passou a me acompanhar.

Chegamos a uma espécie de ponte, de codinome "pinguela". Se via o começo e o fim, suspensa sobre um rio turvo e barulhento. Parecia que haviam pegado os trilhos do trem e posto em cima do rio, mas ali ele mexia, e as cordas que formavam o corrimão, dispostas na vertical, com os ladrilhos falhados que faziam o caminho, embaralhavam os olhos e me faziam engolir saliva em cima de saliva. Foi quando a barriga vazia, desde quando não sei, acho que se estressou com a quantidade de saliva e com medo de que eu a alimentaria somente disso, roncou como forma de me dizer que aquilo não era comida. E o pai, que agora ia à frente, voltou o rosto para trás, não disse nada com a boca, os lábios nem mexeram, mas os olhos surravam pela falta de empatia com todos os demais em cima daquela ponte, que sentiam fome e não estavam reclamando. O medo da altura, da água ou de qualquer outra coisa passou. Meu pai disse para eu ir primeiro, e eu fui, e atravessei rápido para não atrapalhar ninguém.

Chegamos antes do meio-dia na casa do tio. Ele tinha a barba branca, o cabelo branco, lhe faltavam dentes de verdade, quase todos eram de ouro, e lhe faltava também uma perna, ou parte de uma. Do lugar, lembro de um tanque de pedra, perto de uma cerca de arame farpado, que dividia o pátio de uma casa grande, imensa, de dois andares, feita de pedra sobre pedra, que se apresentava de lado, com duas janelas grandes fechadas. Não enxergava a porta. Do outro lado, um pasto vasto que foi plantado ali e cultivado para alimentar algum animal. Atrás da casa, se viam árvores altas e magras, como se tivessem vivido ali uma vida inteira e, com a idade, se entregassem à morte. O resto do que compunha o lugar eu não lembro, como se eu só olhasse para trás e para frente, e o panorama 360 do meu presente, em questão, termina assim, incompleto.

O assoalho era todo vermelho. Ele contou depois, mais tarde, que foi herança da mulher. Ela havia envernizado o assoalho um pouco antes de falecer. Tinha falha nas tábuas, mas nem parecia, porque a terra socada entre cada vão nivelava o ambiente e tapava os buracos, ajudando também a aquecer. As paredes, azul claro, com dois quadros de santos pendurados, e no meio, um relógio grande, com os ponteiros parados e caídos para baixo, avisando aos visitantes que aquele lugar havia parado no tempo. O cenário era composto também de um fogão que um dia foi branco e adornado de flores vermelhas com o caule verde. Hoje, chamuscando pelo calor e manchando de fumaça o vidro da cristaleira azul, que guardava louças incrustadas de pinturas coloridas e bordas traçadas com um fino e suave dourado, que se destacava ao olhar. No mesmo cômodo, cercada por três cadeiras irmãs e outras impostoras, se estendia uma mesa cumprida e quadrada, sob uma toalha de plástico que cobria uma outra de tecido azul escuro. Uma pia no canto, branca, com quatro portas e nenhum puxador, compunham a sala e cozinha, junto de um sofá grande posto de costas para a mesa, fazendo parede.

Comemos feijão com polenta e galinha que o tio matou, e uma moça abastada, de seios grandes e mais clara que eu, cozeu. Julguei ela ser muda, pois não a ouvi dizer nada. Depois, lembrei da santa e me veio à cabeça que ela poderia ter feito um pedido e pago por ele, mas devido ao nosso roubo, não seria realizado. Pedi, em silêncio, desculpas à santa.

A galinha foi a primeira coisa que eu vi morrer. Ela cresceu solta no terreiro, sem regras ou grandes cuidados, comendo o que sobrava, que era atirado ao chão, ou o que ela achava, e toda manhã comia milho. Era laranja, gorda e forte; gritou durante todo o processo, desde quando foi pega até quando a mão do tio agarrou seu pescoço e deslizou nele, torcendo-o . Se debateu um pouco e se foi. Ajudei a tirar as penas dela, e, agora despida, não parecia mais tão gorda ou forte,já não era mais alguém. Quando na panela, o cheiro inundava a cozinha. No fim, só era matéria-prima para comida, temperada com sal, cebola e alho. Tinha algo verde também grudado nela. Comi tudo o que minha mãe pôs no prato e me disse satisfeita.

Não me lembro dos acontecimentos da tarde naquele dia. Talvez fosse sono ou o foco em não deixar a barriga roncar novamente. Tentei não pensar em comida, pensei em uma ou duas formas de requentar o almoço para comer no jantar, antes dessa decisão. Então, veio a noite. Eu jantei. No meu prato, da galinha, tinha a moela. A moela e o estômago da ave, ela triturou tudo o que a galinha pôs no bico e engoliu. Tudo o que ela comeu que a manteve viva  desde que nasceu. Ela processou, e agora eu a comia junto com o restante da comida que estava no prato. Não sei se a galinha sentiu algo mais do que dor. Eu lembro que o gosto e a textura eram bons.

Quando me mandaram dormir, fui dormir. O quarto era escuro, não se enxergava nada, mas se via a luminosidade da sala através da cortina que não cobria toda a porta. O colchão era de palha, fazia barulho e coçava. Meu irmão deitou ao meu lado e se manteve imóvel, ressonando. Me esquentei e adormeci, tentando não me mover para não fazer barulho.

Fui acordada cedo pelo bater de uma porta e risos vindos do outro lado do quarto, junto ao crepitar da lenha que já queimava há tempo, cheiro de café e de cigarro caseiro feito na casca de palha com fumo de corda dissecado sobre a chapa do fogão. Senti cheiro de casa com um pouco mais de poeira. Meu irmão não estava mais ao meu lado. Com receio de já ser tarde demais, saí pulando da cama. Não vi mamãe na cozinha, o fumo não era do pai. Eu parecia atrasada, pois todas as cadeiras da mesa já estavam ocupadas por moças vestindo menos roupa do que a manhã pedia. O sol se esgueirava pela fenda aberta da janela que ficava sobre a pia, e as moças me olhavam de cima a baixo. A única que não me olhava era a muda, que parecia concentrada em servir o café. Até que ela olhou para mim, gesticulou a cabeça e disse, como se fosse o mais importante: "Você aceita café?"

Ninguém me disse que minha família, ou o que eu considerava como tal, havia partido sem despedidas, explicações, lágrimas ou consolos. 

Eu tomei o café. O tio apareceu um tempo depois e pediu para a moça me levar ao meu quarto. Subimos as escadas e fomos para o outro lado da casa, ao som de uma música lenta e com mais cheiro de cigarro. Andamos por um corredor inteiro. Quando chegamos à última porta, ela me disse para entrar, me trocar e ficar à vontade.

Acho que passei o resto do dia sobre a cama,era macia e não fazia barulho. Havia um guarda-roupa de carvalho que enchia a parede do canto e, uma mesa de cabeceira da mesma cor; sobre a qual estava a santa, menos desbotada. Eu a vi somente depois de me trocar. Já vestia um vestido azul, da cor do manto dela. Quando olhei pela única janela do quarto e vi os galhos das árvores mortas dançarem pra mim e, se esconderem entre meio a escuridão que cobrira o dia; bateram me à porta e, eu abri… me sentindo abençoada pelas rebarbas do mundo,de repente eu era a galinha despida com a moela mastigada e, a santa de cima da mesa me fitava com olhos como quem sente pena dos vivos ,ou, sente pena dos mortos.



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